Image default

Evolução humana e doenças de desajuste

#Ciência et al. (Especiais temáticos repletos de informações científicas)

Como nosso passado evolutivo pode nos ajudar a ter hábitos melhores de alimentação?

Destaques:
– Muitas de nossas adaptações biológicas e comportamentais estão relacionadas aos nossos hábitos alimentares desenvolvidos ao longo do processo evolutivo, como a morfologia dos dentes e o uso de técnicas de cozimento;
– Mudanças climáticas, desenvolvimento de hábitos sedentários e de agricultura e domesticação de animais levaram ao surgimento de doenças de desajuste, como problemas intestinais e cáries;
É extremamente útil aprender com a história evolutiva da nossa espécie como o corpo humano está realmente adaptado ao ambiente, principalmente em relação ao que comemos.

A evolução biológica das espécies envolve mudanças nos genes e no fenótipo ao longo do tempo, e a evolução cultural envolve mudanças na estrutura das sociedades humanas. Como nossos corpos funcionam e como as relações entre indivíduos são estabelecidas são essencialmente produtos desses dois processos históricos. Características morfológicas e fisiológicas essenciais para o funcionamento do nosso corpo na realidade evoluíram muito anteriormente à origem das espécies humanas, como a presença de glândulas sudoríparas, a regulação da temperatura corporal, a presença de determinadas enzimas digestivas e a capacidade de digerir e absorver nutrientes. Muitas adaptações, biológicas e comportamentais, estão relacionadas aos hábitos alimentares, incluindo a morfologia dos dentes, relacionada a uma dieta onívora, e o uso de técnicas de cozimento, que facilitou o consumo de carnes e de praticamente qualquer alimento que não fosse venenoso. O Homo sapiens é o único animal que cozinha o que come e, para alguns autores, o desenvolvimento dessa técnica foi justamente a estratégia evolutiva que nos “tornou humanos”.

Nem todas as mudanças evolutivas são totalmente vantajosas quando observadas fora de um contexto específico. O bipedalismo e o desenvolvimento da postura ereta, por exemplo, favoreceram a habilidade de manipulação de pedras e ferramentas, porém restringiram a capacidade de saltar com rapidez ou escalar com a mesma agilidade de outros primatas não-bípedes. Embora essas atividades ainda possam ser desempenhadas, elas podem exercer impactos negativos em nossos corpos quando executadas em excesso ou indevidamente, uma vez que nossa forma corpórea não favorece um alto desempenho nesse tipo de situação, como ocorre com os macacos arborícolas.  Efeito semelhante pode ser desencadeado por uma alimentação não adequada, ou seja, muito diferente da dieta realizada por nossos ancestrais, que esteve associada à evolução do fenótipo do humano moderno. Por isso, investigar o contexto evolutivo de como e porque apresentamos determinadas características e comportamentos nos ajuda a compreender o que é ou não biológico em nossa espécie.


Evolução da dieta humana

As mudanças climáticas globais afetaram drasticamente o estilo de vida dos nossos ancestrais e tiveram um papel marcante na evolução humana. Por exemplo, o encolhimento das florestas fechadas e a predominância das florestas abertas e savanas durante períodos glaciais levaram a menor disponibilidade de frutas para a alimentação; nesse momento, habilidades como cavar com as mãos ou manipular algum tipo de ferramenta se tornaram essenciais para se conseguir alimentos alternativos (tubérculos, bulbos e raízes, e alguns insetos). Esses cenários afetaram a dinâmica das atividades de caça e coleta em espécies primitivas de Homo, incluindo o Homo erectus, cuja evolução marca a origem de um corpo muito semelhante ao do humano atual, bem como as maneiras modernas de se comunicar, cooperar, comer e usar ferramentas.

Durante o Paleolítico Superior, entre 35 a 40 mil anos atrás, a dieta dos grupos de caçadores-coletores na Europa se baseava especialmente em proteína animal, como peixes, coelhos, gazelas e cabras silvestres, além de legumes, castanhas e grãos de cereais silvestres, que em algumas populações já eram processados em farinha utilizando ferramentas rudimentares. Com o final do último período glacial, em torno de 12.000 anos atrás, alguns grupos de caçadores-coletores reagiram ao aquecimento do clima mantendo o nomadismo, e outros grupos responderam com inovações tecnológicas e maior complexidade social relacionadas a modos de vida mais sedentários. Neste contexto, surgiram inovações bem-sucedidas relacionadas à agricultura e à domesticação, gerando a primeira economia agrícola na área do Crescente Fértil, que hoje abrange parte do Egito, Líbano, Turquia, Síria, Palestina, Israel, Chipre, Jordânia, Irã e Iraque. 

A transição do nomadismo para a agricultura sedentária marcou o início do período Neolítico pré-cerâmico. Os agricultores pioneiros do Crescente Fértil viviam em povoados, em casas de tijolo de barro com paredes e assoalhos rebocados, em populações de até 500 pessoas. Faziam elaboradas pedras de moer para triturar e amassar comida, haviam domesticado ovelhas, porcos e bois, produziam cerâmica e iniciaram um novo estilo de vida que floresceu e se expandiu rapidamente pelo Oriente Médio e penetrou na Europa, Ásia e África. Similarmente, nas Américas, o milho e o feijão foram domesticados na região do México e da América Central entre aproximadamente 9.000 e 8000 anos atrás, e as batatas foram domesticadas no mesmo período na América do Sul por comunidades andinas. Assim como os produtos cultivados tomaram o lugar de plantas selvagens, os animais domesticados tomaram lugar dos caçados.

Considerando dietas, carga de trabalho, tamanho da população e sistemas de povoamento agrícola, a biologia humana foi afetada de várias maneiras, levando ao aparecimento de muitas doenças características de “desajuste”. 


Doenças de desajuste

Uma das causas de desajustes é a perda da variedade nutricional. Muitas partes dos alimentos integrais, como a maioria dos grãos, se estragam rapidamente por oxidação ou por contaminação e, com o passar dos dias, esse processo de degradação se espalha e atinge todo o grão. Para os caçadores-coletores, esse processo deveria dificultar a estocagem de alimentos por mais de um ou dois dias, como cereais, castanhas e sementes oleaginosas. Com o tempo, as comunidades agrícolas solucionaram como armazenar alimentos básicos por meses ou anos por meio do refinamento desses cereais. Esse processo é utilizado para aumentar a vida útil, facilitar a estocagem e permitir uma melhor aceitabilidade de paladar. No entanto, tudo isso é alcançado ao custo de grande porcentagem do valor nutricional. 

Quando esses grãos passam pelo processo de refinamento, são retirados tanto o gérmen como a casca, locais onde se encontram a maioria das vitaminas, minerais e fibras. Comparando o arroz branco com o integral, por exemplo, o último tem seis vezes mais vitaminas do complexo B. A importância de inclusão de fibras na dieta foi amplamente discutida entre as décadas de 60 e 70, quando médicos ingleses observaram que populações africanas que se alimentavam de cereais integrais, como faziam nossos ancestrais nômades, apresentavam menor incidência de doenças intestinais. A fibra alimentar acelera a passagem de alimentos e excrementos através dos intestinos, prevenindo constipação, além de estarem envolvidas na produção de subprodutos com importante função fisiológica. Além das questões nutricionais, o maior tempo de armazenamento potencializou a exposição dos alimentos à uma toxina produzida por fungos do gênero Aspergillus, presente em diversos alimentos e que representa risco para a saúde de humanos e animais domésticos, levando a danos principalmente no fígado, como câncer, e problemas neurológicos; algo que raramente afetaria os caçadores-coletores.

Outra mudança importante decorrida do novo estilo após a Revolução Agrícola foi o aparecimento de uma dieta baseada em raízes e outras plantas ricas em carboidratos, mas com menos fibras, vitaminas e minerais, aumentando a quantidade de doenças, em contraposição aos coletores-caçadores, que tinham uma dieta mais variada. Apesar do ótimo sabor, o excesso de amido, que é um tipo de açúcar, atrai bactérias que excretam um ácido, que é absorvido pelas placas que se formam nos dentes e dissolvem suas coroas, causando cáries. Cáries eram raras nos caçadores-coletores, mas se tornaram gradativamente mais comuns entre os agricultores do período neolítico, e ainda mais frequentes nas populações de períodos posteriores, em que carboidratos correspondiam a uma base significante da dieta.


Conclusão

A espécie humana alcançou considerável progresso tecnológico durante os últimos milhares de anos, desde que deixou de ser caçadora-coletora e passou a armazenar alimentos e água, além de adquirir, higienizar e preparar comida, associado com mudanças ambientais e novos estilos de vida, como menor exposição ao sol, utilização de meios de transporte e de medicamentos e a usufruir de saneamento ambiental. Tais mudanças interagem com a expressão de genes que evoluíram em um outro contexto ambiental e social, mas que combinados às condições de vida em que hoje estamos inseridos, podem produzir resultados negativos ao nosso corpo. Nossa dieta, em particular, deveria prevenir doenças, e não contribuir para doenças de desajustes.

A dieta nos define, não apenas como indivíduos, mas como espécie, e nossas escolhas alimentares ditam nossas interações fundamentais com o meio ambiente e, como o antropólogo John Fleagle escreveu, “a dieta é o parâmetro mais importante subjacente às diferenças comportamentais e ecológicas entre primatas vivos”. Por esses motivos, é extremamente útil aprender, com a rica e complexa história evolutiva da nossa espécie, como desenvolvemos as capacidades socioculturais e como o corpo humano que herdamos está realmente adaptado ao ambiente que criamos e em que vivemos, principalmente em relação ao que comer e como se exercitar em condições de abundância e conforto. Nossas escolhas e modo de vida podem tornar nossa espécie cada vez menos dependente de medicamentos. A cultura não nos permite transcender nossa biologia.

Colaboração: Narcisa Zeferino da Silva Pavan sobre a autora

Fontes consultadas:

– Matéria na Folha de São Paulo – Suplemento Ilustríssima intitulada “Cozinho, logo existo”, publicada em 21/07/2013 de autoria de Suzana Herculano Houzel. (Matéria);

– Livro ‘’Pegando fogo: porque cozinhar nos tornou humanos’’, de autoria de Wrangham, R., publicado pela Editora Zahar em 2010;

– Artigo científico intitulado “Becoming Human: the evolution of walking upright”, publicado na revista Smithsonian Magazine em 2012, de autoria de Wayman, E. (Artigo);

– Artigo científico intitulado “Hominin Evolution in settings of Strong environmental variability”, publicado na revista Quaternary Science Reviews em 2013, de autoria de Potts, R.;

– Artigo científico intitulado “The Evolution of bipedalism in hominids and reduced group size in chimpanzés: alternative responses to decreasing resource availability”, publicado na revista Journal of human evolution em 2013, de autoria de Isbell, LA e Young, TP.;

– Artigo científico intitulado “Bioenergetics and the origin of hominid bipedalism”, publicado na revista The American Journal of Physical Anthropology em 1980, de autoria de Rodman, PS e McHenry, HM.;

– Artigo científico intitulado “Processing of wild cereal grains in the Upper Palaeolithic revealed by starch grain analysis”, publicado na revista Nature em 2004, de autoria de Piperno, DR, Weiss, E, Holst I e colaboradores.;

– Artigo científico intitulado “Stable isotope evidence for European Upper Paleolithic human diets”, publicado na revista Springer em 2009, de autoria de Richards, MP.;

– Livro “The Oxford Handbook of the Archaeology and Anthropology of Hunter-Gatherers”, de autoria de Cummings, V Jordan, P e Zvelebil, M, publicado por Oxford Handbooks Online, em 2014. (Livro);

– Artigo científico intitulado “Early Neolithic genomes from the eastern Fertile Crescent”, publicado na revista Science em 2016, de autoria de Broushaki, F e Thomas, MG.; 

– Artigo científico intitulado “Estimating population size, density and dynamics of Pre-Pottery Neolithic villages in the central and southern Levant: an analysis of Beidha, southern Jordan”, publicado na revista The Journal of the Council for British Research in Levant, em 2017, de autoria de Birch-Chapman, S, Jenkins, E, Coward, F e colaboradores.;  

– Artigo científico intitulado “Paleopathology and the origin of agriculture in the Levant”, publicado na revista The American Journal of Physical Anthropology, em 2010, de autoria de Eshed, V, Gopher, A, Pinhasi, R e colaboradores.;  

– Artigo científico intitulado “The Emergence of Animal Management in the Southern Levant”, publicado na revista Scientific Reports, em 2010, de autoria de Munro, ND, Bar-Oz, G, Meier, JS e colaboradores.;

– Artigo científico intitulado “Organic residue analysis shows sub-regional patterns in the use of pottery by Northern European hunter-gatherers”, publicado na revista Royal Society Open Science, em 2020, de autoria de Courel, B, Robson, HK, Lucquin, A e colaboradores.;  

– Artigo científico intitulado “Genomic history of the origin and domestication of common bean unveils its closest sister species”, publicado na revista Genome Biology, em 2017, de autoria de Herrera-Estrella, A.;

– Artigo científico intitulado “Rethinking the Corny History of Maize”, publicado na revista Smithsonian Magazine, em 2018, de autoria de Katz, B.;  

– Artigo científico intitulado “Genome diversity of tuber-bearing Solanum uncovers complex evolutionary history and targets of domestication in the cultivated potato”, publicado na revista PNAS Magazine, em 2017, de autoria de Hardigan, MA, Laimbeer, FPE, Newton, L e colaboradores.;    

– Artigo científico intitulado “A Theory of Human Life History Evolution: Diet, Intelligence, and Longevity”, publicado na revista Evolutionary Anthropology, em 2000, de autoria de Kaplan, H, Hill, K, Lancaster, J e colaboradores.;    

– Artigo científico intitulado “Arroz: composição e características nutriconais”, publicado na revista Ciência Rural, em 2008, de autoria de Walter, M, Marchezan, E, Avila, LA.;   

– Artigo científico intitulado “Denis Burkitt and the origins of the dietary fibre hypothesis”, publicado na revista Nutrition Research Reviews, em 2018, de autoria de Cummings, JH e Engineer, A.;

– Artigo científico intitulado “Assessment of aflatoxigeinic Aspergillus species in food commodities from local market of Addis Ababa”, publicado na revista Research, em 2014, de autoria de Gemeda, N, Woldeamanuel, Y, Asrat, D, e colaboradores.; 

– Livro “Thecnique and Application in Dental Anthropology.’’, de autoria de Irish, JD e Neson, GC publicado pela Cambridge University Press em 1998.;

– Livro “Paleopathology at the Origins of Agriculture.’’, de autoria de Cohen, MN e Armelagos, GJ publicado pela New York Academic Press em 1984.;

– Livro “Adaptações e evolução de primatas.’’, de autoria de Fleagle, JG, publicado pela New York Academic Press em 1999. 2ª ed.;

– Artigo científico intitulado “Molar macrowear reveals Neanderthal eco-geographic dietary variation”, publicado na revista PLos One, em 2011, de autoria de Fiorenza, L, Benazzi, S, Tausch, J, e colaboradores.;

– Artigo científico intitulado “Fibra alimentar – ingestão adequada e efeitos sobre a saúde do metabolismo”, publicado na revista Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia, em 2013, de autoria de Bernaud, FSR e Rodrigues, TC.

(Editoração: Priscila Rothier, Beatriz Spinelli, Fernando Mecca e Caio Oliveira)

Postagens populares

Você conhece a Tristeza Parasitária Bovina?

IDC

Risco eletrostático e sua prevenção

IDC

Antibióticos fortalecem bactérias?

IDC

Por que se vacinar contra a febre amarela?

IDC

Nem vírus, nem bactéria: as infecções causadas por proteínas!

IDC

Proteja seu gato de FIV e FeLV

IDC