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De Sereias a Elefantes Aquáticos: quem são os Sirênios?

SirênioQuando Cristóvão Colombo documentou, em um diário de bordo datado das Grandes Navegações ao Novo Mundo em meados de 1493, a observação em alto mar de “formas femininas não tão belas quanto representadas”, ele na verdade avistava o que viria a ser o primeiro registro de um sirênio na América do Norte. Por causa da frequente confusão dos navegadores envolvendo estes animais e sereias, à sua Ordem foi atribuído o nome Sirenia (do Latim sirena), pelo entomólogo e zoólogo alemão Johann Karl Wilhelm Illiger, em 1811.

Os sirênios são mamíferos aquáticos herbívoros popularmente conhecidos como Peixe-boi e Dugongo, normalmente são avistados sozinhos ou em pequenos grupos, e podem ser encontrados em águas tropicais e subtropicais. Atualmente, existem apenas quatro espécies viventes pertencentes à duas Famílias, Trichechidae e Dugongidae. A primeira inclui Trichechus manatus, o peixe-boi-marinho, Trichechus senegalensis, o peixe-boi-africano, e Trichechus inunguis, o peixe-boi-amazônico. A Família Dugongidae conta apenas com uma espécie, Dugong dugon, os dugongos, cuja distribuição ocorre entre os Oceanos Índico e Pacífico, especialmente nos entornos da Austrália. Até cerca de 1770 ainda existiam registros de uma espécie do gênero Hydrodamalis, ao longo da costa Pacífico Oriental, porém a caça em busca de sua carne e gordura os levaram à extinção.

Morfologia de uma Sereia?

As confusões envolvendo a aparência dos sirênios com sereias remetem não só a Cristóvão Colombo e seus companheiros, mas também ao famoso capitão John Smith e até mesmo à pesquisadores mais recentes, que relatam momentos em que, “à meia luz”, a cabeça desses animais realmente poderia se parecer com a de uma pessoa. Na realidade, a morfologia dos sirênios envolve uma cabeça arredondada com focinho e boca largos, achatados e inclinados para baixo, o que permite com que “pastem” com facilidade no fundo do mar em busca de algas, sua principal fonte de alimento. Tanto os peixes-boi quanto os dugongos são animais roliços, acinzentados e recobertos por alguns pelos. Os membros superiores são parecidos com nadadeiras em ambos os grupos, porém o que mais os diferencia, em uma primeira impressão, é a cauda: a dos dugongos é achatada e bifurcada como a de uma baleia, enquanto a dos peixes-boi é arredondada.

Os sirênios possuem o menor cérebro de todos os mamíferos em relação à massa corpórea, mas sua capacidade cognitiva assemelha-se à dos golfinhos, embora executem movimentos mais lentos. Os olhos e os ouvidos são pequenos e pouco desenvolvidos, e a função sensorial e de localização é atribuída às mais de 5000 vibrissas distribuídas pelo corpo e região facial, sendo as maiores responsáveis por nortear esses animais pelas estradas da vida.

O aparato dentário é interessante: nos peixes-boi, todos os dentes são considerados molares. Estes se formam na parte de trás da mandíbula e maxila, e, à medida que avançam e se desgastam, são substituídos e acabam caindo, orquestrando um fenômeno gentilmente chamado de “Marcha dos Molares”. Esta substituição constante pode ser considerada uma adaptação ao seu hábito alimentar, que frequentemente inclui algas duras misturadas com areia. Nos dugongos, por outro lado, essa substituição contínua não acontece, e seus dentes caracterizam-se principalmente por dois incisivos bem desenvolvidos.  

Com relação à peso e altura, os peixes-boi são maiores e mais pesados: atingem entre 2 a 4 metros e pesam em torno de 200 e 600kg, enquanto os dugongos medem entre 2 e 3 metros e pesam entre 200 e 500kg.

 

História de Vida e Distribuição

Os dugongos podem viver até 70 anos em vida livre, enquanto os peixes-boi vivem aproximadamente 40.  A maturidade sexual acontece entre oito e 18 anos e a reprodução é sazonal, quando a fêmea atrai diversos machos. A gestação dura de 12 a 14 meses, e os filhotes nascem na água. As mães os auxiliam no primeiro nado até a superfície para que respirem pela primeira vez, o que pode acontecer em apenas uma hora após o nascimento. A amamentação pode durar até 18 meses de vida, mas após esse período os filhotes continuam a acompanhar a mãe por vários anos, uma vez que ela não parirá novamente por um período que pode chegar de 2,5 a 7 anos. A baixa taxa reprodutiva dos sirênios é um dos desafios para a manutenção e conservação da espécie, pois os deixa vulneráveis a declínios dramáticos devido ao impacto das atividades humanas.

Enquanto os dugongos têm ocorrência limitada aos Oceanos Índico e Pacífico, os peixes-boi são mais amplamente distribuídos. Os peixes-boi-marinhos são migratórios, e podem ser encontrados nas vias costeiras da América do Norte, América Central e América do Sul. O peixe-boi-amazônico habita as bacias da América do Sul, especialmente a Bacia Amazônica e do Rio Orinoco, e dificilmente se aventura em água salgadas. Já o peixe-boi-africano pode ser encontrado ao longo do continente de mesmo nome.

As quatro formas de sirênios viventes atualmente. West Indian Manatee é o Peixe-Boi-Marinho; African Manatee é o Peixe-Boi-Africano; Amazon Manatee é o Peixe-Boi-Amazônico; e Dugong é o Dugongo. Imagem: Rohan Chakravarty.

 

Um ancestral elefante?

Acredita-se que os primeiros sirênios surgiram no início do Eoceno na Europa, espalhando-se ao final deste período pela Ásia Tropical e América do Norte. Os dugongos eram o grupo predominante no Caribe e no Mediterrâneo até o final do Mioceno, quando todas, exceto as espécies do Indo-Pacífico, foram extintas, possivelmente em consequência de mudanças oceânicas e climáticas. Os peixes-boi da América do Sul alcançaram essa região posteriormente, durante o Plioceno.

O ancestral comum terrestre mais antigo dos sirênios de que se tem registro é o Pezosiren portelli, da Família Prorastomidae. Registros fósseis dão a entender que esta espécie era totalmente capaz de se locomover em terra, com base nos quatro membros locomotores bem desenvolvidos, assim como suas articulações e sacro que suportariam o peso do animal fora da água. Suas adaptações aquáticas (evidenciadas por características morfológicas e pela localidade de coleta do fóssil), no entanto, sugerem que este animal passava mais tempo na água do que na terra. P. portelli é considerada uma forma intermediária que ilustra a transição evolutiva da terra para a água, e acredita-se que esta transição envolveu um extensão da região espinhal com simultânea formação de um “remo pélvico”, diferentemente dos sirênios mais recentes e dos cetáceos, que perderam os membros traseiros e tiveram a calda enlarguecida, com função de propulsão na água.

As tentativas de aparentar os sirênios com os mamíferos terrestres viventes os agrupam aos elefantes, aardvaks, hyrax, toupeiras e tenrecos, visto que todos pertencem à Superordem de mamíferos placentários Afrotheria, cuja única característica externa compartilhada é o focinho móvel, denominado probóscide.

Representação da reconstrução de Pezosiren portelli, o ancestral comum mais antigo dos sirênios de que se tem registro. Imagem: Domning (2001).

 

Futuro incerto

Certa percentagem de mortalidade dos peixes-boi é atribuída a causas naturais, como o estresse por frio e doenças gastrointestinais. Nos Estados Unidos, a perda de habitat pode ser considerada outro fator adicional à mortalidade dos espécimes da região. Por serem animais grandes e lentos que habitam águas e rios costeiros, os sirênios são vulneráveis ​​a ameaças como caça para extração de sua pele, óleo, carne e ossos, além de muitas vezes serem atingidos acidentalmente por lanchas e embarcações, ou capturados por engano em redes de arrasto utilizadas para pesca. Na África, a falta de informações básicas a respeito da espécie africana dificulta a tomada de ações de conservação, e no Brasil, o peixe-boi-da-Amazônia é considerado vulnerável pela IUCN, principalmente por se envolverem em acidentes com embarcações. Os dugongos, por sua vez, sofrem com a interferência da expansão dos portos comerciais, dragagem de áreas costeiras, redes de tubarões e desastres naturais como ciclones, que têm interferido e causado a eliminação dos leitos de algas, praticamente sua única fonte de alimento. Nos últimos 30 anos, estima-se que as populações de dugongos tenham diminuído 90%, e estão listados pela IUCN como ameaçados de extinção.  

A taxa de reprodução lenta, associada às ameaças que os sirênios juvenis e adultos sofrem durante a vida, dificultam sua sobrevivência, reprodução e consequente conservação. Alguns órgãos e grupos são responsáveis pela manutenção das espécies, como o Save the Manatees, o SOS African Wildlife, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, a Fundação Mamíferos Aquáticos, e o The Dugongs & Seagrass Conservation Project.

Pig, o dugongo. Imagem: www.sydneyaquarium.com.au

No Aquário de Sydney está permanentemente hospedado o único dugongo mantido em cativeiro do mundo, chamado Pig. Ele foi resgatado em 1998 em Forrest Beach, Northern Queensland, com apenas um mês de idade. A equipe do SEALIFE reabilitou Pig, e ele foi devolvido à vida selvagem. Porém, algum tempo depois, foi encontrado novamente e havia perdido 30% de seu peso, além de estar ferido, o que fez com que equipe do SEALIFE optasse por mantê-lo no aquário. Parcerias e ações de conservação foram impulsionadas pela presença e simpatia de Pig, bem como colaborações com a Universidade de Queensland, que também desenvolve projetos de conservação de dugongos. Dentre as peculiaridades inerentes a manter um dugongo em cativeiro está a dieta que deve ser mantida: na ausência de algas, a alimentação é feita diariamente com cerca de 80 kg de alface!

 

Ciência et al: Nathalia Rossigalli Alves Costa

sobre a autora

Fontes consultadas:

Domning, D. P. The earliest known fully quadrupedal sirenian. Nature, vol. 413, 625-627, 2001.

https://ocean.si.edu/ocean-life/marine-mammals/mermaids-manatees-myth-and-reality

https://www.sun-sentinel.com/news/fl-xpm-2005-12-25-0512240086-story.html

https://journeynorth.org/tm/manatee/AdaptationsHead.html

http://mentalfloss.com/article/61457/12-things-you-might-not-have-known-about-manatees

https://www.nationalgeographic.com/animals/mammals/group/manatees/

https://www.nationalgeographic.com/animals/mammals/d/dugong/

https://australianmuseum.net.au/learn/animals/mammals/dugong/

https://ucmp.berkeley.edu/mammal/mesaxonia/sirenia.html

https://www.sydneyaquarium.com.au/news/6-fun-facts-about-dugongs/

https://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/especiais/biodiversidade/especie_do_mes/marco_peixe_boi_da_amazonia.cfm

http://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/docs-plano-de-acao/sirenios.pdf

https://australianmuseum.net.au/learn/australia-over-time/evolving-landscape/the-geological-time-scale/

(Editoração: Viviane Santana, Eduardo Borges, André Pessoni e Caio Oliveira)

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