Você já se perguntou como as células do nosso corpo são tão diferentes uma das outras, mesmo todas tendo uma única informação genética? Ou como seus hábitos de vida podem ter influência no seu DNA?
Imagem: https://www.nature.com
Por muito tempo, acreditou-se que a sequência de genes em uma célula era a única responsável pela sua formação, função, e transmissão de características ao longo das gerações. No entanto, diversas questões continuavam sem explicação, por exemplo, como gêmeos idênticos (com a mesma informação genética) apresentam características diferentes um do outro. Foi então que, após muitas pesquisas, foi descoberto que há também uma regulação de quais genes são expressos, o que vai muito além da sequências de bases no DNA: as alterações epigenéticas.
A epigenética é a ciência que busca compreender as mudanças reversíveis na expressão gênica, ou seja, os componentes que podem modificar como os genes são lidos sem alterar a sequência de nucleotídeos do DNA. Além disso, as modificações epigenéticas podem ser transmitidas ao longo das gerações, sendo herdadas no momento da divisão celular (mitose), atuando na formação de diferentes fenótipos entre os indivíduos.
Imagine que todo seu DNA seja um longo texto, e que você precise destacar quais são os trechos mais e menos importantes para serem lidos, de acordo com quem vai ser o leitor. Os mecanismos epigenéticos funcionam da mesma forma: eles marcam sequências específicas do DNA que devem ser transcritos pela maquinaria de uma determinada célula, marcas essas que são diferentes para cada momento e ambiente específico. Mesmo tendo exatamente a mesma sequência do DNA, as células da pele conseguem ser tão diferentes das células do cérebro porque os genes dos melanócitos estão silenciados nos neurônios e vice-versa.
Os mecanismos epigenéticos fazem pequenas alterações químicas na sequência de DNA, ou proteínas, mudando a acessibilidade à cromatina e gerando mudanças na leitura dos genes. Os principais mecanismos epigenéticos são a metilação direta ao DNA, modificações em histonas e a atuação dos RNA não codificantes.
Metilação do DNA
Em mamíferos, a metilação do DNA consiste na substituição do hidrogênio (-H) por um metil (-CH3) no carbono 5 no anel da citosina. Essa transformação da citosina em 5-metilcitosina (5mC) é feita pela família de enzimas metiltransferases, e ocorre, por exemplo, nas ilhas CpGs das regiões promotoras dos genes. Quando as citosinas nessas regiões estão metiladas, as proteínas que realizam a transcrição dos genes e a RNA polimerase não conseguem se ligar à fita do DNA, de forma que aquele gene continuará “desligado”. A metilação, e consequentemente o silenciamento de genes, é um mecanismo determinado pelo período do ciclo ou desenvolvimento de uma célula, possibilitando o bom funcionamento de um organismo. Caso o padrão de metilação seja alterado por um poluente ambiental, por exemplo, um novo padrão de metilação será instalado, ativando diferentes genes que deveriam estar silenciados, gerando efeitos na vida e saúde daquele indivíduo.
Metilação do DNA. (A) Adição do grupo metil ao carbono 5 do anel de citosina, reação mediada pela DNA metiltransferase (DNMT). (B) A metilação de regiões promotoras impedindo o início da transcrição gênica. Imagem: Vieira (2017).
Modificações de histonas
O DNA é muito maior que o núcleo (da célula) em que está inserido e, por isso, a fita precisa ser condensada para caber dentro desse espaço. Esse trabalho é feito pelas histonas, as proteínas que empacotam o DNA. Partes da fita de nucleotídeos se enrosca em volta de grupos de histonas, formando os chamados nucleossomos, com aspecto de um colar de contas. O DNA se condensa conforme esses nucleossomos se aproximam, e as regiões compactadas nos nucleossomos não podem ser transcritas. Para que um gene possa ser expresso em um determinado momento é necessário que sua sequência de bases esteja acessível para a maquinaria celular, e é aí que entra a epigenética. As histonas sofrem modificações para permitir ou não a transcrição dos genes. A acetilação das histonas, que é a adição de um radical acetil (-COCH3) em resíduos de lisina feita por enzimas chamadas Histona Acetil-Transferases (HATs), resulta na descompactação da cromatina, permitindo a expressão do gene naquela região. Já a metilação dessas histonas, feita pelas enzimas HMTs (histonas metil-transferases), pode tanto silenciar quanto ativar genes, dependendo de qual resíduo de aminoácido esteja ocorrendo a modificação.
As histonas são responsáveis pela compactação da fita de DNA, e suas modificações podem alterar a forma como ocorre essa condensação, permitindo que os genes daquela região sejam transcritos ou não. Imagem: https://www.promega.com/
RNA não-codificantes
Por muito tempo, os genes eram considerados somente códigos para a produção de RNA mensageiro (mRNA), e que o Dogma Central da Biologia (DNA -> RNA -> Proteínas) era o único caminho para fluxo de informações. Apenas 2% do DNA gera proteínas, e cientistas acreditavam que as porções de DNA que não codificam proteínas (introns) não tinham funções específicas nas células, sendo chamadas de “DNA lixo”. Depois de muitas décadas de pesquisas, sabe-se hoje de algumas das funções destes introns: regiões que são transcritas em RNAs não codificantes (ncRNA) capazes de atuar como reguladoras da expressão gênica. Existem diversos tipos e funções dos ncRNA, como os mais conhecidos RNA ribossômico e transportador. No entanto, há também os RNAs que tem a função de regular a síntese de proteínas, como é o caso dos microRNAs, que podem se ligar a outros mRNAs e, assim, impedir que ele seja traduzido e a proteína seja produzida. Acredita-se que cerca de 30% a 60% dos genes que codificam proteínas podem ser regulados por microRNAs. Há também os RNAs longos não codificantes (lncRNA), que podem se ligar à fita de DNA e impedir que uma série de genes seja lida. Mesmo que muitos mecanismos já sejam bem conhecidos, essa função de regulação exercida pelos RNAs ainda é algo recente na ciência e que ainda precisa ser melhor estudada.
Toda essa regulação epigenética ocorre de forma natural em nossas células durante toda nossa vida. Porém, essas marcas não são fixas e podem sofrer alterações em resposta à fatores ambientais (externos ou internos) que podem ter influência em como esses mecanismos atuam. Poluição, radiação, alimentação, fumo, alterações hormonais, diversas doenças, traumas e até o próprio envelhecimento podem gerar alterações nos padrões epigenéticos em nosso DNA. Isso ajuda a explicar porque gêmeos idênticos com as mesmas sequências de DNA, apresentam tantas diferenças entre si. A exposição e o contato com diferentes ambientes resulta em mudanças nas marcas epigenéticas, que podem ser específicas em cada um dos irmãos, resultando nas diferenças que observamos em cada um deles. Além disso, mesmo que uma pessoa tenha nascido com um gene que aumenta suas chances, por exemplo, de contrair câncer, dependendo das suas escolhas e do seu estilo de vida, essa doença pode ou não vir a se manifestar durante a vida. Por outro lado, doenças podem surgir sem que haja a predisposição, causadas por um hábito de vida não saudável.
Imagem: http://sitn.hms.harvard.edu
Através da epigenética, um organismo pode ajustar a expressão gênica de acordo com o ambiente onde vive, sem mudanças no seu genoma. Por exemplo, experiências vividas pelos pais (dieta, traumas emocionais, tratamento hormonal) podem ser transmitidas para os descendentes através da “memória epigenética”. Diversos estudos têm demonstrado como essas características são passadas ao longo de gerações, como no caso de famílias onde os avós sofreram com grave escassez de alimentos, e que os filhos e netos apresentam maior risco de doenças cardiovasculares e diabetes. Outros estudos mostraram que mães podem passar diversas características emocionais aos filhos durante a gravidez, através da liberação de hormônios, regulando a expressão de genes após o nascimento.
Continua a ideia de que as girafas não são pescoçudas porque se esticaram para comer folhas nos topos das árvores, mas a epigenética nos mostra o quanto o ambiente em que vivemos e nosso estilo de vida podem contribuir “ligando” ou “desligando” determinados genes, e que isso também pode trazer consequências para as futuras gerações. Cada vez mais as pesquisas mostram como nossas escolhas de ambiente e estilo de vida podem ter influência em nossas células… e você, tem cuidado do seu epigenoma (e dos seus filhos) tendo um vida saudável?
Ciência et al: Viviane Paiva Santana
Fontes consultadas:
http://revistacarbono.com/artigos/03-epigenetica-e-memoria-celular-marcelofantappie/
http://ead.hemocentro.fmrp.usp.br/joomla/index.php/noticias/adotepauta/669-mecanismos-epigeneticos
Vieira, Gilberto Cavalheiro. Admirável mundo novo: a epigenética. In: Evolução biológica: da pesquisa ao ensino. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017. Capítulo 7, p. 177-212.
(Editoração: Eduardo Borges e Caio Oliveira)