Evolução sensorial e ecologia das primeiras tartarugas revelada por reconstruções digitais de moldes dos seus cérebros
Resumo
Determinar se as primeiras tartarugas viviam em ambientes aquáticos, terrestres ou fossoriais é difícil, pois pouco sabemos sobre o parentesco evolutivo dessa linhagem. Avanços tecnológicos como o uso de tomografia computadorizada podem auxiliar na compreensão da origem e evolução das tartarugas, pois permitem o estudo dos cérebros de animais extintos. Os moldes do cérebro da mais antiga tartaruga conhecida foram reconstruídos digitalmente neste estudo e comparados com os de outras tartarugas. Os resultados sugerem que as primeiras tartarugas eram terrestres, com algumas regiões do cérebro similares aos jabutis de hoje. Esse cérebro, inicialmente uma estrutura simples e tubular, se diversificou em diferentes linhagens que conquistaram novos ambientes (marinho, dulcícola e fossorial) e novos comportamentos se desenvolveram. Esse estudo exemplifica que podemos estudar órgãos de animais extintos mesmo quando não fossilizados e aprender mais sobre a origem e evolução desses grupos.
Introdução
As tartarugas são uma linhagem cujo corpo é intensamente modificado em comparação com outros répteis. Este plano corporal diferenciado associado à escassez de fósseis dificultam o entendimento sobre suas relações filogenéticas, isto é, a história evolutiva das tartarugas.
As diferentes propostas de relações filogenéticas para esse grupo de animais implicam diferentes hipóteses sobre qual era o ambiente em que os ancestrais das primeiras tartarugas viviam. De forma geral, a ideia que se tinha sobre este tema era diretamente relacionada à paleobiologia do grupo aos quais as tartarugas eram associadas. Por exemplo, quando consideradas parentes mais próximas de grupos de animais terrestres os ancestrais das tartarugas eram considerados terrestres, já quando a relação mais próxima era com grupos de animais marinhos, eles eram considerados também marinhos.
Evidências diretas sobre o ambiente no qual estes répteis viviam eram basicamente restritas a poucas e conflituosas informações geológicas existentes que não permitem uma conclusão consensual entre os especialistas. Dessa forma, outras abordagens são necessárias para investigar a paleobiologia destes répteis. Avanços tecnológicos recentes, como o uso de tomografia computadorizada para estudos paleontológicos, permitem o estudo de um outro aspecto que pode ajudar no entendimento da paleobiologia de espécies fósseis: a paleoneuroanatomia, isto é, o estudo dos cérebros de animais extintos.
Material & Métodos
Neste estudo, foram reconstruídos digitalmente moldes endocranianos de algumas estruturas da cabeça da mais antiga tartaruga conhecida, Proganochelys quenstedti (Figura 1), com o intuito de investigar sua paleobiologia.
Figura 1: Molde endocraniano (direita), crânio (centro) e cabeça como em vida (esquerda) de Proganochelys quenstedti reconstruídos digitalmente. Imagem: Stephan Lautenschlager
Dois crânios fossilizados da tartaruga P. quenstedti foram tomografados e os moldes internos da cavidade craniana (que abriga o cérebro), de nervos cranianos, do ouvido interno (que abriga órgãos relacionados à audição e equilíbrio) e cavidade nasal (que abriga órgãos relacionados ao olfato) foram reconstruídos em um programa computacional (Figura 1). O processo de reconstrução gera modelos tridimensionais destas estruturas, que podem ser visualizados e medidos virtualmente. Estes moldes foram descritos e comparados com os moldes de outra tartaruga extinta e de mais nove táxons viventes, além de contornos do molde endocraniano de outros 52 táxons possivelmente parentes das tartarugas. Por meio de comparações de forma e testes estatísticos, é possível comparar os moldes endocranianos entre grupos diferentes e avaliar a posição de táxons duvidosos dentro do espaço de forma ocupado por estes grupos (Figura 2).
Figura 2: Resultados da análise da forma do molde endocraniano de vários grupos ecológicos (acima) e filogenéticos (abaixo). Note a posição de Proganochelys, fora do espaço de forma ocupado por todos estes grupos. Imagem: Lautenschlager et al. 2018
Resultados & Discussão
De forma geral, o molde endocraniano da mais antiga tartaruga P. quenstedti (Figura 1) era bastante simples quando comparado com outros répteis incluindo outras tartarugas. Sua estrutura tubular com pouca diferenciação entre as regiões cerebrais revela que durante a evolução das tartarugas o cérebro não só aumentou de tamanho, mas tornou-se também mais diverso, talvez em associação à maior diversidade de hábitos e comportamentos que são hoje observados em tartarugas viventes.
Da mesma forma, o molde do ouvido interno de P. quenstedti é mais robusto e compacto que em tartarugas viventes. Estruturas do ouvido interno diretamente relacionadas ao equilíbrio, chamadas de canais semicirculares, tornaram-se mais desenvolvidas e diversas durante a evolução do grupo, o que também é relacionado a esta diversidade de comportamentos, principalmente em animais mais ágeis.
A comparação da forma geral do molde endocraniano, por sua vez, não apresentou resultados muito conclusivos (Figura 2). Com estas medidas não foi possível separar e definir as formas características dos grupos considerados, tanto filogenéticos (como tartarugas, crocodilos, dinossauros e lagartos) quanto ecológicos (como terrestres, fossoriais, aquáticos e marinhos).
Apesar da análise de forma geral não ter contribuído muito para o entendimento da paleobiologia de P. quenstedti, sua comparação anatômica de partes individuais, em conjunto com dados de outras fontes, revelou uma consistente afinidade das tartarugas com com outros animais terrestres.
Além do sentido do olfato, a cavidade nasal de P. quenstedti abriga estruturas relacionadas a termorregulação, isto é, ao controle de temperatura corporal. Estudos prévios com outros grupos de amniotas e também com tartarugas sugeriram uma forte relação entre cavidades nasais grandes e terrestrialidade. O tamanho da cavidade nasal de P. quenstedti é comparável ao grupo de tartarugas terrestres (jabutis), sendo consideravelmente maior que de outras tartarugas semi-aquáticas (cágados) ou aquáticas (marinhas).
Todos estes novos dados em associação ao ambiente deposicional continental onde os fósseis deste táxon foram encontrados suportam a hipótese de que as primeiras tartarugas com casco não eram animais aquáticos ou fossoriais, mas sim terrestres, provavelmente semelhantes aos jabutis conhecidos hoje.
O estudo também exemplifica como podemos estudar a biologia de animais extintos, incluindo aspectos que não são fossilizados, como o cérebro.
Pesquisa ao seu alcance: Gabriel S. Ferreira
Artigo original
O texto apresentado é uma adaptação do artigo “Sensory evolution and ecology of early turtles revealed by digital endocranial reconstructions”, publicado pela revista Frontiers in Ecology and Evolution em fevereiro de 2018, de autoria de S. Lautenschlager, G. Ferreira e I. Werneburg. O artigo original pode ser acessado em https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fevo.2018.00007/full.
(Editoração: Fernando Mecca, Gabriela Duarte, Gabriel Ferreira e Caio Oliveira)