#Farol de Notícias (Atualidades científicas que foram destaque na semana)
Mais da metade dos entrevistados relatou que passou fome no mês anterior à entrevista e a ocorrência de sintomas apresentou relação também com vulnerabilidade social, escolaridade e cor da pele das mães.
Um novo estudo realizado por pesquisadores brasileiros e publicado nesta segunda-feira (18/07) na revista PLOS Neglected Tropical Diseases, relatou que a insegurança alimentar contribui diretamente para uma criança apresentar sintomas da COVID-19. A pesquisa foi realizada no Acre e, dentre os resultados, destaca-se que entre as crianças com evidências sorológicas de infecção anterior por SARS-CoV-2, ou seja, com a presença de anticorpos contra o vírus no teste, são aquelas cujos domicílios passaram fome no mês anterior às entrevistas apresentaram chance de ter COVID-19 76% maior quando comparadas com crianças que não tinham sido expostas à insegurança alimentar.
Exames físicos e testes de anticorpos para o SARS-CoV-2 foram realizados em duas ocasiões, primeiro em janeiro e depois em junho e julho de 2021, num total de 660 das 1.246 crianças nascidas em 2015 ou 2016 inicialmente acompanhadas pelo estudo. Além disso, foram realizadas entrevistas com as mães ou cuidadores. Nas entrevistas, havia questões sobre a presença de sintomas da COVID-19 nas crianças, como tosse, dificuldade para respirar e perda de paladar e olfato. Em adição, um questionário definiu a ocorrência de insegurança alimentar domiciliar, que indica se a família havia passado fome no mês anterior.
Mais da metade dos domicílios dos participantes (54%) foi caracterizada em estado de insegurança alimentar. Entre esses, 9,3% reportaram sintomas de COVID-19 em comparação a 4,9% de crianças cujas famílias não relataram insegurança alimentar, o que mostra uma vulnerabilidade 76% maior do grupo em situações de insegurança à manifestação clínica da infecção por SARS-CoV-2. A maior ocorrência de infecção mostrou ainda uma relação com piores condições de moradia, além de menor escolaridade e a cor da pele das mães, a maioria não branca. No total, 297 crianças (45%) tiveram anticorpos para SARS-CoV-2 detectados. Dessas, apenas 11 (3,7%) haviam realizado testes para confirmação da COVID-19 antes do estudo e 48 (16,2%) tiveram sintomas como tosse, dificuldades respiratórias e perda de olfato e paladar. Entre as mais pobres, a presença de sintomas foi maior.
“Normalmente, os adultos priorizam a alimentação das crianças, podendo passar fome para poder alimentar os filhos. Se a criança da casa passou fome é sinal de uma situação muito difícil para a família toda”, explica a pesquisadora Marly Augusto Cardoso, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e coordenadora do estudo.
Ainda que quase metade das crianças tenha apresentado anticorpos para o SARS-CoV-2, só 5% das mães reportaram um episódio anterior de COVID-19 nos filhos, sugerindo que oito em cada nove infecções ficaram sem diagnóstico e, portanto, não foram notificadas. Essa subnotificação, alertam os pesquisadores, têm consequências para a saúde pública, como a falsa percepção de que as crianças são menos suscetíveis à doença. Porém, ofato de serem em grande parte assintomáticas, faz com que crianças e adolescentes sejam transmissores para o resto da família, incluindo pessoas mais suscetíveis a quadros graves, como idosos e pessoas com comorbidades.
Uma limitação do estudo foi o fato de os participantes desse segmento do projeto viverem na área urbana ou em áreas rurais acessíveis. Os pesquisadores acreditam que em localidades mais distantes, com menos acesso a serviços de saúde, é possível que a situação seja ainda pior. “Na área rural distante é difícil continuar o acompanhamento e perdemos o contato com muitos dos participantes. Isso ocorre também com os mais pobres, mais difíceis de serem localizados porque mudam muito de endereço e mesmo de região. Perdemos contato com mais de 300 crianças ao longo de cinco anos de acompanhamento”, narra Cardoso.
Um dado que chamou a atenção também foi a menor manifestação de sintomas nas crianças filhas de mães com mais de 12 anos de escolaridade. A manifestação da COVID-19 foi maior à medida que diminuía o número de anos de educação formal das progenitoras. “É importante ressaltar que as crianças das famílias mais pobres e aquelas com mães menos instruídas foram significativamente mais propensas a serem soropositivas para o SARS-CoV-2. Isso reflete uma condição socioeconômica pior do que daquelas que estudaram mais tempo e também um menor acesso a informações e a alternativas de sobrevivência, que se refletem em melhor assistência à saúde dos filhos”, afirma a pesquisadora. Portanto, investimento em educação das mães teria impacto na qualidade de vida das crianças.
Atualmente, o grupo analisa amostras da microbiota intestinal de participantes do estudo a fim de fazer correlações entre a alimentação e a ocorrência de diversas doenças, incluindo a COVID-19.
Colaboração: Jéssica de Moura Soares sobre a autora
Jéssica de Moura Soares é Bacharel em Biotecnologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Mestre e agora doutoranda em Bioquímica pela Universidade de São Paulo (USP). Se interessa por iniciativas onde a ciência ajuda a transformar o mundo em um lugar mais sustentável e igualitário. Entusiasta da divulgação científica, acredita que a ciência tem que ser de fácil acesso a todos.
Fontes e mais informações sobre o tema:
Matéria no site Agência FAPESP, intitulada “Na Amazônia, fome aumentou em 76% risco de crianças terem COVID-19”, publicada em 19/07/22. https://agencia.fapesp.br/na-amazonia-fome-aumentou-em-76-risco-de-criancas-terem-covid-19/39146/