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O assédio e as consequências para as mulheres que tentam seguir carreira acadêmica

O assédio no ambiente acadêmico é um grande desestimulador das mulheres nesta carreira, e embora existam ações para mudar isto, elas ainda são bastante insuficientes

Destaques:
– Como em quase todos os ambientes, a academia é permeada por casos de assédio contra as mulheres;
– Mais da metade dos graduados do país são mulheres, mas menos de 20% chegam a cargos de prestígio;
– O assédio se mostra como motivo para a saída das mulheres da academia;
– Existem poucas políticas para mudar este cenário, e as que existem ainda são muito frágeis;
– Não só as mulheres atingidas pelo assédio saem perdendo, mas excluí-las da academia prejudica o próprio desenvolvimento científico.

Encontre uma mulher, em qualquer lugar, e pergunte se ela já foi assediada. Certamente ela dirá que sim. Você pode perguntar quantas vezes e ela provavelmente dirá que já perdeu as contas. O assédio é algo muito comum na vida das mulheres1 e o ambiente acadêmico não é diferente. Muitos professores, ou até colegas de turma, cometem assédios com as mulheres que estão ao seu redor. Recentemente, esses casos têm ganhado maior repercussão. Além de destacarem a quantidade de mulheres que passam por experiências constrangedoras, essas histórias também instigam medidas para mudar a situação. Mas nem sempre foi assim e ainda há muito a ser feito.

Mulheres contribuem com os avanços da ciência há muitos séculos, mas estamos longe de atingir a equidade em termos de tratamento e reconhecimento no meio científico. Ainda hoje as situações de assédio são frequentes na vida das mulheres e cerca de 56% das alunas de graduação e de pós-graduação relatam ter sofrido algum tipo de assédio2.  No mês passado, a revista Science, uma das mais prestigiadas na ciência, reportou o caso de um professor que foi despedido da Universidade dos Andes3 por cometer assédios, em especial contra alunas e professoras4. Esse professor foi descrito como um biólogo proeminente. O caso gerou diversos protestos na comunidade universitária. Havia aqueles que reconheciam que não podemos mais tolerar este tipo de comportamento na universidade e que questionavam até que ponto aceitaremos abusos em prol do mérito que a pessoa tem. Por outro lado, havia aqueles que diziam que ele era um professor renomado e que não poderia ser punido por um comportamento que era aceito pela universidade até pouco tempo atrás. 

Esse último posicionamento têm sido a principal dificuldade que mulheres enfrentam quando denunciam casos de assédio no meio acadêmico. Na maioria das vezes, as pessoas se preocupam com a perda de um talento (o assediador) e não se atentam a quantos talentos (de mulheres) estão sendo desperdiçados, uma vez que muitas mulheres não conseguem permanecer no ambiente acadêmico. Muitas delas não chegam nem a conseguir expor o potencial que possuem, pois elas se sentem desconfortáveis naquele ambiente cedo demais. Estas situações expõem um privilégio que, de tão estabelecido na nossa sociedade, deixou de ser visto como privilégio5, tornou-se invisível: a prioridade é manter o homem, em detrimento de tornar um ambiente confortável para as mulheres permanecerem nele. Vale ressaltar que muitos destes homens são tidos como indivíduos problemáticos, mas este não é um problema de indivíduos e sim um problema decorrente de como a sociedade enxerga a mulher, por isso, um problema estrutural1, vinculado a como as pessoas são educadas, desde muito cedo, a entender os papéis de gênero na sociedade6

 

porcentagem de mulheres assediadas no meio acadêmico de pesquisa
Dados sobre o assédio sexual de mulheres cientistas. Imagem: Instituto Avon/Data Popular.

 

Falas que constrangem as mulheres e outros comportamentos deste tipo se tornam micro agressões diárias e acabam sendo fontes de motivos para as mulheres saírem da academia. Estes comportamentos, somado com outros fatores, contribuem para gerar um padrão que chamamos de “Efeito tesoura” ou “Efeito goteira”. Neste padrão, a proporção de mulheres diminui à medida que se aumenta o nível na hierarquia profissional. Um grupo de cientistas da UFRGS publicou no ano de 2018, nos Anais da Academia Brasileira de Ciências, um artigo que mostrava que mais de 50% das pessoas que possuem graduação são mulheres7; contudo, quando olhamos a proporção de mulheres que estão em posição de liderança e prestígio, como por exemplo os membros titulares da academia, a proporção de mulheres cai para 14%. Este fenômeno não é exclusividade do Brasil, ele é reconhecido mundialmente. 

 

distribuição de bolsas de pesquisa e ciência apresenta desigualdade de gênero
Bolsas de produtividade concedidas pelo CNPq a pesquisadores com base na produção acadêmica. Imagem: O Globo.

 

Nas últimas décadas, houve um aumento na quantidade de mulheres no ambiente acadêmico, e com isso, aumentou-se também a pressão pela revisão das normas de conduta de sociedades científicas e instituições8. No ano passado, mais de 250 pesquisadoras da América Latina (onde o machismo está muito arraigado) assinaram uma carta à revista científica Science pedindo ações para deter a má conduta de assediadores9. Essas medidas ajudam muitas mulheres a se sentir mais confortáveis para denunciar situações que estejam vivenciando. Além disso, com o apoio de colegas da turma ou do laboratório, as mulheres se sentem mais respaldadas para realizar as denúncias. 

Em resposta ao assédio sofrido, nos últimos anos diversos movimentos se estabeleceram em meios digitais, como o Twitter, incluindo movimentos como #MeToo, #MyTeacherSaid, #ThisIsMyTeacher, entre outros. Através dessas hashtags, muitas mulheres tornaram públicas situações constrangedoras que elas haviam vivido, como um professor dizendo que aquele curso não era para ela; ou que a prova seria mais fácil porque era para uma mulher; ou que mulher só entra na faculdade para arranjar marido10; entre muitos outros exemplos. Criou-se, por fim, um projeto internacional, chamado “O sexismo de cada dia” que une histórias de como mulheres têm que mudar sua rotina, suas atividades mais simples, como andar até uma loja, para evitar ou minimizar situações de assédio. Todas essas medidas aumentaram a visibilidade das situações de assédio e assim, possivelmente, aumentem a chance de impedir que estas situações ocorram.

 

denúncia contra machismo em universidades feito pela campanha Meninas na Ciência
Exemplo de frases denunciadas na campanha #EsseÉMeuProfessor. Imagem: Meninas na Ciência (UFRGS).

 

Algumas universidades também estão criando comitês com protocolos para lidar com o assédio, em alguns casos oferecendo recursos legais para as vítimas e inclusive adicionando cursos sobre questões de gênero. A Universidade de São Paulo (USP) possui hoje o USP Mulheres11, um projeto que inclui 10 países, 10 empresas e 10 universidades e é incentivado pela Organização das Nações Unidas (ONU). O principal objetivo deste escritório é propor e incentivar projetos e atividades voltadas à igualdade de gênero e empoderamento de mulheres nas universidades. Este projeto também incentivou a criação de comissões dentro dos Institutos que existem na universidade, como o IB Mulheres12, no Instituto de Biociências. 

Mesmo com essas iniciativas, o caminho pela frente ainda é longo. As comissões muitas vezes atuam prioritariamente de forma educativa no ambiente universitário, e raramente possuem políticas eficazes para denunciar, investigar e/ou punir o assédio ou o abuso sexual. Além disso, ainda são poucas as universidades no Brasil que possuem comitês. Existem diversos casos de mulheres que abandonam as universidades após denunciarem episódios de assédio, porque a lentidão do processo as deixa tão desconfortáveis que elas preferem sair daquele ambiente. Ou até mesmo porque elas precisam reviver a todo momento situações traumáticas para cumprir com os quesitos burocráticos da denúncia. Mesmo neste cenário ainda inicial, possuir comitês e pessoas treinadas para acolher vítimas de assédio permite uma minimização do trauma.

Mas, no final, por que deveríamos nos importar em criar uma academia na qual as mulheres permaneçam até estágios hierárquicos mais altos? Bem, as mulheres representam metade da sociedade e permitir que elas possam seguir suas paixões e se sintam confortáveis em seu ambiente de trabalho é uma forma de construirmos uma sociedade mais igualitária. E para somar, existem estudos que demonstram que ter mulheres no ambiente de trabalho gera um aumento na criatividade, em ações inovadoras e estratégias propostas para se resolver diferentes tipos de problemas13. Desta forma, todos ganhamos ao construir uma academia mais inclusiva e igualitária.

Especial “Mulheres na Ciência”: Pamela Cristina Santana sobre a autora

Referências:

    1. Sundaram, V.; Jackson, C. ‘Monstrous men’ and ‘sex scandals’: the myth of

    exceptional deviance in sexual harassment and violence in education. Palgrave Communications. 2018. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41599-018-0202-9.pdf. Acessado em: 17/03/2020.

    1. Instituto Avon. Violência contra a mulher no ambiente universitário. Disponível em: http://www.ouvidoria.ufscar.br/arquivos/PesquisaInstitutoAvon_V9_
      FINAL_Bx20151.pdf. Acessado em: 17/03/2020.
    1. Ortega, R.; Wessel, L. Colombian university fires prominent biologist accused of sexual harassment. Disponível em: https://www.sciencemag.org/news/2020/02/colombian-university-fires-prominent-biologist-accused-sexual-harassment. Acessado em: 17/03/2020.
    1. Wessel, L.; Ortega, R. ‘The spark has ignited.’ Latin American scientists intensify fight against sexual harassment. Disponível em: https://www.sciencemag.org/careers/2020/02/spark-has-ignited-latin-american-scientists-intensify-fight-against-sexual. Acessado em: 17/03/2020.
    1. Kimmel, M. Porque a igualdade de gênero é boa para todos – incluindo os homens. Disponível em: https://www.ted.com/talks/michael_kimmel_why_gender_equality_is_go
      od_for_everyone_men_included?language=pt-br. Acessado em: 17/03/2020.
    1. 6. McCarry, M. Becoming a ‘proper man’: young people’s attitudes about interpersonal violence and perceptions of gender. Gender and Education. 2009.
    1. Ferrari, N.; Martell, R.; Okido, D. e colaboradores. Geographic and Gender Diversity in the Brazilian Academy of Sciences. Anais da Academia Brasileira de Ciências. 2018.
    1. Maxmen, M. Biologist exits prestigious post years after violating sexual-harassment policy. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-020-00491-w. Acessado em: 17/03/2020.
    1. Bernal, X.; Rojas, B.; Pinto-E, M. e colaboradores. Empowering Latina scientists. Science. 2019. Disponível em: https://science.sciencemag.org/content/363/6429/825.2
    1. Meninas na Ciência (UFRGS). Disponível em: https://www.ufrgs.br/meninasnaciencia/campanhas. Acessado em: 17/03/2020.
    1. USP Mulheres. Disponível em: http://uspmulheres.usp.br/escritorio/. Acessado em: 17/03/2020.
    1. IB Mulheres. Disponível em: https://www.ib.usp.br/o-instituto/ib-mulheres.html. Acessado em: 17/03/2020.
    1. Dezso, C.; Ross, D. Does female representation in top management improve firm performance? A panel data investigation. Strategic Manage Journal. 2012.
    2. The Daily Californian. Repositório de acusações de assédio na Universidade da Califórnia. Disponível em: http://projects.dailycal.org/misconduct/. Acessado em: 17/03/2020.
    1. Academic Sexual Misconduct Database. Base de dados sobre assédio sexual acadêmica. Disponível em: https://academic-sexual-misconduct-database.org/. Acessado em: 17/03/2020.

(Editoração: Luanne Caires, Fernando Mecca e Caio Oliveira)

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