#Farol de Notícias (Atualidades científicas que foram destaque na semana)
Em fato inédito no mundo, o Instituto Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), detectou a contaminação de tubarões por cocaína e seu metabólito, a benzoilecgonina, na costa do Rio de Janeiro
Nas últimas horas tem viralizado a notícia de que tubarões na costa brasileira, mais especificamente no Rio de Janeiro, testaram positivo para cocaína. Trata-se de uma pesquisa realizada por cientistas marinhos do Instituto Oswaldo Cruz e que foi publicada recentemente na revista Science of The Total Environment. Eles testaram 13 tubarões chamados popularmente de cações-rola-rola (também conhecidos como tubarão-bico-fino-brasileiro) no litoral do Rio e detectaram altos níveis de cocaína em seus músculos e fígado.
A pesquisa é a primeira no mundo a detectar cocaína em tubarões e a concentração encontrada é cerca de cem vezes maior do que a verificada em outros animais marinhos. Existem algumas especulações de como a contaminação dos animais pode ter ocorrido, mas ainda não é possível concluir com clareza.
Esta não é a primeira pesquisa que se propõe a investigar a presença de drogas em animais marinhos. Os resíduos farmacêuticos, sejam eles legais ou ilegais, são um problema pouco estudado para a vida selvagem nos oceanos, rios e lagos, mas esta preocupação vem crescendo nos últimos anos.
Outras pesquisas também detectaram vestígios de cocaína e outras drogas ilegais em animais perto de grandes cidades, como Londres, e na costa da Flórida. Também já existem pesquisas que investigam a presença de antibióticos e outros fármacos como esteroides em animais aquáticos, principalmente os que são alvo de consumo humano.
Para o estudo brasileiro, os pesquisadores dissecaram 13 tubarões capturados acidentalmente por pescadores entre setembro de 2021 e agosto de 2023 nas águas do Recreio dos Bandeirantes, um bairro do Rio de Janeiro.
A equipe encontrou, além de cocaína, benzoilecgonina – um metabólito produzido quando a cocaína é decomposta no corpo – nos tecidos musculares e hepáticos de todos os 13 peixes. Além disso, a cocaína estava presente principalmente nos músculos, em uma proporção três vezes maior comparada ao fígado dos animais. Ainda, as fêmeas apresentaram maior concentração da substância nos músculos, comparado aos machos. Todas as fêmeas no estudo estavam grávidas, mas não se sabe qual é o efeito da exposição de cocaína para os fetos.
O estudo também revelou que os todos os tubarões tinham níveis três vezes mais altos de cocaína do que de benzoilecgonina, o que significa que a droga não foi metabolizada nos corpos de humanos ou outros organismos – em vez disso, parte dela pode ter sido despejada diretamente na água. “Embora eu não esteja surpresa em ver metabólitos de cocaína na água, pois isso seria esperado da urina humana, estou surpresa em ver ‘cocaína’ na água”, comenta Tracy Fanara, oceanógrafa da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, que não participou desta pesquisa.
A bióloga Rachel Ann Hauser-Davis e o ecotoxicologista Enrico Saggioro, ambos do Instituto Oswaldo Cruz e autores do estudo, observaram que não analisaram a saúde dos tubarões nesta pesquisa. Mas os efeitos negativos são “prováveis”, com base em estudos anteriores que mostraram danos a peixes-zebra e mexilhões expostos à cocaína.
Outras pesquisas sobre os olhos de peixes revelaram que a droga pode afetar a visão e a capacidade de caça dos animais, afirmam os pesquisadores. “Há várias questões relacionadas à saúde deles, como possíveis problemas reprodutivos, bem como problemas nas interações entre presas e predadores”, dizem os dois cientistas.
Os autores do estudo acreditam que há duas maneiras pelas quais a cocaína está chegando aos peixes: a exposição crônica partir dos dejetos de usuários de drogas que entram no sistema de esgoto, bem como laboratórios “clandestinos” de refino da droga que descartam cocaína pura em dutos de esgoto ao longo do Canal de Sernambetiba, que deságua no oceano no Recreio dos Bandeirantes. Pacotes com cocaína perdidos ou jogados por traficantes no mar também poderiam ser uma das fontes da droga, mas os pesquisadores consideram essa hipótese menos provável.
O estudo também evidencia o processo de bioacumulação de substâncias e animais de topo da cadeia alimentar. Os tubarões podem absorver a cocaína diretamente através de suas guelras ou comendo presas menores que contenham a substância. Essa bioacumulação por meio da cadeia alimentar pode explicar por que os tubarões apresentaram níveis mais altos de cocaína do que outros organismos aquáticos testados em pesquisas anteriores.
Os pesquisadores apenas analisaram uma espécie de tubarão, mas eles acreditam que outras espécies da região também possam testar positivo para cocaína. “Como os tubarões são carnívoros e a principal via de exposição de muitos poluentes químicos é a via alimentar, é muito provável que os animais que nossos tubarões atacam (crustáceos, outros peixes) estejam contaminados”, disse Rachel Davis.
Portanto, isso implica que o efeito da contaminação por cocaína nos tubarões pode chegar aos humanos via cadeia alimentar. A pesquisadora afirma que a droga pode acabar entrando no organismo humano pelo consumo comum no Brasil do tubarão-cação-rola-rola como alimento. No mercado, algumas espécies de tubarão são vendidas sob o nome comum de cação.
“A cocaína já entrou na cadeia alimentar, uma vez que os tubarões são consumidos rotineiramente pelos humanos no Brasil e em muitos outros países, incluindo os EUA, o Reino Unido, o México e muitos outros, muitas vezes vendidos genericamente como flocos, ‘fish and chips’, cação e outros nomes”, diz Davis.
Não está claro se a quantidade da droga ingerida por meio do consumo desses animais pode fazer mal à saúde humana. “As preocupações com a saúde humana ao longo da cadeia alimentar ainda não podem ser estabelecidas, uma vez que não foram estabelecidos limites relativamente aos efeitos negativos para a saúde. No que diz respeito à saúde humana por outra via, que inclui a exposição direta à água, acreditamos que esta seria mínima.”
No estudo, os pesquisadores pedem aos órgãos reguladores do Brasil que reconheçam a presença de drogas ilícitas nos ecossistemas marinhos e monitorem e reduzam sua presença por meio de legislação. A descoberta de cocaína em tubarões, escrevem eles, “destaca a urgência de estruturas legais robustas e medidas proativas para lidar com essa questão ambiental emergente”.
Colaboração:
Jéssica de Moura Soares sobre a autora
Jéssica de Moura Soares é bacharel em Biotecnologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Mestre e agora doutoranda em Bioquímica pela Universidade de São Paulo (USP). Se interessa por iniciativas onde a ciência ajuda a transformar o mundo em um lugar mais sustentável e igualitário. Entusiasta da divulgação científica, acredita que a ciência tem que ser de fácil acesso a todos.
Fontes e mais informações sobre o tema:
Artigo Científico de autoria de Gabriel de Farias Araujo , Luan Valdemiro Alves de Oliveira, Rodrigo Barcellos Hoff, Natascha Wosnick, Marcelo Vianna, Silvani Verruck, Rachel Ann Hauser-Davis, Enrico Mendes Saggioro, intitulado “Cocaine Shark”: First report on cocaine and benzoylecgonine detection in sharks, publicado na revista Science of The Total Environment, em 15 de julho de 2024. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0048969724049477
Matéria no site BBC News Brasil, intitulada “O que explica cocaína em tubarões no litoral do Brasil?”, publicada em 23/07/24. https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g937w0mv4o
Matéria no site National Geographic Brasil, intitulada “Tubarões da costa do Brasil são encontrados com cocaína em seus corpos. Como isso aconteceu?”, publicada em 24/07/24. https://www.nationalgeographicbrasil.com/animais/2024/07/tubaroes-da-costa-do-brasil-sao-encontrados-com-cocaina-em-seus-corpos-como-isso-aconteceu