Crescer em diferentes ambientes durante o desenvolvimento resulta em mudanças integradas na morfologia e comportamento no peixe sul-americano Piauçú (M. macrocephalus)
Destaques: – Plasticidade no desenvolvimento representa um fenômeno pelo qual novos fenótipos podem surgir rapidamente sem a necessidade de prévia mudança genética; – Neste trabalho, pesquisadores investigaram como diferentes tipos de ambiente afetam a resposta plástica na morfologia e no comportamento de peixes meios-irmãos da espécie Piauçú (Megaleporinus macrocephalus); – Os peixes preferem ficar em ambientes semelhantes aos que cresceram, mesmo que ambientes mais seguros estejam disponíveis; – O ambiente onde estes peixes se desenvolvem também afeta seu formato de corpo. |
Resumo
Os processos de desenvolvimento de um ser vivo integram sinais genéticos, epigenéticos e ambientais na produção de características complexas e integradas, como a morfologia e o comportamento dos animais. Isto significa que, na natureza, ocorrem mudanças conjuntas de vários níveis (morfologia, fisiologia e comportamento) em resposta a vários sinais ambientais (temperatura, alimento, substrato). Apesar disso, experimentos em laboratório comumente exploram essas respostas plásticas do desenvolvimento olhando apenas para um traço em resposta a uma única variável ambiental. Neste trabalho, nós exploramos a natureza multivariada da plasticidade do desenvolvimento, testando como a combinação de diferentes sinais ambientais afeta as respostas morfológicas e comportamentais. Meios-irmãos da espécie Megaleporinus macrocephalus foram criados em quatro ambientes de desenvolvimento diferindo na posição de forrageamento e na estrutura do substrato. Ao final do experimento, os diferentes ambientes induziram morfotipos (tipos ou padrões de morfologias) e comportamentos distintos entre os grupos. Diferenças na posição de forrageamento induziram mudanças na posição relativa da boca e nadadeiras, bem como na forma do corpo. Tais mudanças foram acentuadas por substratos complexos. Além disso, os peixes tendem a preferir locais que lembrem seu ambiente de desenvolvimento. A combinação de sinais ambientais específicos resultou na indução de padrões fenotípicos (morfologia e comportamento) que também são específicos para tais ambientes de desenvolvimento. Estes resultados ilustram como a combinação de ambientes específicos e respostas plásticas do desenvolvimento podem enviesar a variação fenotípica expressa em populações naturais.
Introdução
Em organismos multicelulares, processos de desenvolvimento combinam concomitantemente informações genética, epigenética e ambiental que produzem indivíduos complexos e viáveis. Essa natureza multifatorial permite que muitas respostas sejam plásticas, ou seja, os fenótipos produzidos podem diferir em maior ou menor grau dependendo do ambiente em que se desenvolvem. Um exemplo bem conhecido de tal plasticidade do desenvolvimento são as castas produzidas em insetos sociais (abelhas e formigas): de acordo com o tipo e quantidade de alimento recebido pela larva, pode se desenvolver uma rainha ou uma operária. O ambiente de desenvolvimento, por sua vez, é composto por múltiplos fatores como, por exemplo, temperatura, comida, luz e presença de outros organismos, provenientes do micro-habitat onde o indivíduo se desenvolve.
Nas últimas décadas, a plasticidade do desenvolvimento tem recebido crescente atenção na literatura evolutiva, pois representa um fenômeno pelo qual novos fenótipos podem surgir rapidamente sem a necessidade de prévia mudança genética. Tal variação plástica pode representar uma importante fonte de adaptação para populações naturais vivendo em novos ambientes, bem como promover ampla diversificação fenotípica. Apesar de sua importância, este fenômeno tem sido comumente investigado por abordagens focando em uma única característica (por exemplo, tamanho) em resposta a um único fator ambiental (por exemplo, temperatura). Tais abordagens trazem valiosas contribuições ao nosso entendimento sobre a plasticidade do desenvolvimento, entretanto ignoram a complexidade dos ambientes naturais e a natureza integrada das respostas fenotípicas. Neste trabalho, nós resgatamos a natureza multivariada da plasticidade do desenvolvimento, investigando como diferentes combinações de sinais ambientais distintos afetam a resposta plástica na morfologia e no comportamento do peixe M. macrocephalus (Piauçú), pertencente à família Anostomidae. Especificamente, testamos se diferentes ambientes de desenvolvimento facilitam ou enviesam a diversidade fenotípica expressa através de i) distintos morfotipos plásticos e, ii) preferência do local de forrageamento e permanência escolhidos pelos peixes.
Métodos
Mil alevinos de M. macrocephalus provenientes da mesma desova (meios-irmãos) foram igualmente distribuídos em 4 ambientes de desenvolvimento diferentes (Figura 1, coluna do meio) onde cresceram por 8 meses: 1) Superfície, consistindo em uma floresta flutuante de plantas artificiais, onde os indivíduos só recebiam alimento na superfície; 2) Generalista, um ambiente rico de plantas artificiais na superfícies e no fundo, e cascalho no fundo, onde os indivíduos eram alimentados na superfície e no fundo; 3) Fundo complexo, consistindo em um fundo coberto de cascalhos e plantas artificiais, onde os indivíduos só recebiam comida no fundo e; 4) Fundo simples, completa ausência de plantas e cascalhos (substrato simples) onde os indivíduos eram alimentados apenas no fundo. Foi utilizada a mesma comida (ração comercial para alevinos) em todos os grupos. Cada grupo foi feito em duplicata. Após o 8º mês, os indivíduos foram eutanasiados por meio de de sobredose anestésica seguindo as determinações da Comissão de Ética no Uso de Animais.
Para testar se as morfologias diferiram, nós utilizamos uma técnica chamada morfometria geométrica, onde pontos são distribuídos em regiões específicas ao longo do corpo do peixe, sendo as mesmas regiões em todos os indivíduos. A partir disso, foram aplicadas análises multivariadas para testar se os grupos criados em diferentes ambientes de desenvolvimento eram diferentes com relação à forma do corpo, e qual era o padrão dessas diferenças morfológicas.
Para testar o efeito dos ambientes de desenvolvimento sobre o comportamento, foram feitos 3 testes: a) local preferido para forragear (se alimentar); b) local preferido para permanecer quando não se alimentando e; c) teste de fuga de predador. Para testar o local preferido de forrageamento (a) os peixes foram mantidos em jejum por 3 dias. Em seguida, comida foi oferecida ao mesmo tempo na superfície e fundo para cada grupo e o comportamento alimentar foi gravado em vídeo. Este teste foi repetido 3 vezes para cada grupo. Softwares de análise de vídeo e estatística foram utilizados para testar a frequência e quantidade de peixes se alimentando na superfície ou fundo em cada grupo. Para testar o local de permanência preferido (b), foi construído um aquário onde todos os ambientes de desenvolvimento estavam concomitantemente disponíveis. Foram utilizados 25 peixes de cada grupo nesse teste, sendo expostos ao teste individualmente. O local preferido de permanência foi definido como o primeiro local escolhido pelo peixe para repouso e permanência, este comportamento é apresentado após os primeiros minutos de exploração e aclimatação no novo aquário. Foi avaliado se o peixe escolheria um lugar similar ou diferente de seu ambiente de desenvolvimento. Modelos estatísticos foram aplicados para testar as diferenças entre os grupos. Finalmente, peixes de cada grupo (10 por grupo) foram individualmente colocados em um outro aquário onde foram manualmente estimulados para fuga, simulando a presença de um predador. A aceleração e velocidade de nado foram coletadas por um software de análise de vídeos, e as diferenças entre os grupos estatisticamente testadas.
Resultados e Discussão
Os ambientes de desenvolvimento induziram respostas plásticas integrando mudanças morfológicas e comportamentais. Quando observadas conjuntamente, tais respostas claramente promoveram um súbito aumento de diversidade fenotípica em M. macrocephalus, promovendo ampla divergência entre os grupos (Figura 1). Em relação à morfologia, os resultados mostram que a plasticidade do desenvolvimento pode gerar morfotipos completamente distintos em M. macrocephalus. Houve a expressão de dois principais morfotipos plásticos: um rostro upturned (apresentando a boca relativamente voltada para cima, em destaque na Figura 1, direita, superior) bem como corpo mais curto e ventralmente expandido nos grupos Superfície e Generalista (Figura 1, direita, superior). Já os grupos de Fundo complexo e Fundo simples apresentaram rostro subterminal (boca relativamente voltada para baixo, em destaque na Figura 1, direita, inferior), corpo mais alongado, apresentando a região dorsal mais alta e ventral mais achatada (Figura 1, direita, inferior). Entretanto, também houve diferenças entre os grupos dentro de cada morfotipo (discutidas no trabalho original), especialmente acentuadas pela estrutura do substrato (complexo versus simples). De fato, todos os grupos diferiram significativamente com relação à forma, sugerindo que cada ambiente de desenvolvimento mudou a morfologia média da amostra inicial em 4 diferentes frequências fenotípicas.
O padrão comportamental parece ser bastante enviesado pelo ambiente de desenvolvimento. De fato, em todos os grupos os indivíduos mostraram clara preferência em forragear nas posições e permanecer nos ambientes similares aos de seus ambientes de desenvolvimento (Figura 1, esquerda). O grupo generalista apresentou uma gama maior de preferências de acordo com seu ambiente de desenvolvimento. É esperada uma preferência natural pelo fundo, uma vez que a superfície pode ser um ambiente deveras perigoso para um peixe. Também é esperada uma preferência por substratos complexos (apresentando plantas e pedras) os quais oferecem proteção. Entretanto, peixes criados desde sempre na superfície preferem permanecer neste ambiente mesmo quando o fundo complexo está disponível. Mais intrigante é o caso do fundo simples: os peixes escolheram repousar e permanecer num ambiente sem nenhuma proteção (plantas e pedras) mesmo quando a alternativa mais segura está ao lado (fundo complexo). Estes resultados sugerem um poderoso efeito do ambiente experimentado nos estágios iniciais de desenvolvimento sobre as preferências destes peixes ao longo de suas vidas. Ainda é obscuro se tais preferências podem ser mudadas com o uso cotidiano de um novo ambiente. Claramente a gama de diversidade expressa pela morfologia é bem mais ampla que aquela dos comportamentos explorados aqui. Finalmente, os grupos não diferiram quanto à aceleração e velocidade de nado durante o comportamento de fuga.
Os resultados apresentados neste trabalho corroboram a hipótese de que a plasticidade do desenvolvimento pode promover ampla divergência fenotípica entre populações (ou grupos de indivíduos dentro de uma população) que se desenvolvem em micro-habitats diferentes. As mudanças morfológicas (posição relativa da boca e forma do corpo) estão diretamente associadas às atividades de forrageamento realizadas pelos indivíduos em seus ambientes particulares. E os comportamentos de preferência reforçam o uso contínuo de tais ambientes mesmo quando alternativas são oferecidas. Estas respostas integradas entre morfologia e comportamento poderiam rapidamente promover e manter morfotipos divergentes nas populações, especialmente se estes minimizarem a competição entre os indivíduos da mesma espécie por alimento e ambientes de ocupação. Estes morfotipos continuarão a ser expressos enquanto os indivíduos se desenvolverem nas condições ambientais que favorecem sua indução. Fenótipos particulares são induzidos por combinações particulares de sinais ambientais, ilustrando a complexidade da interação entre ambiente de desenvolvimento e expressão da variação fenotípica.
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Colaboração: Leandro Lofeu
Artigo original
O texto apresentado é uma adaptação do artigo “Different developmental environments reveal multitrait plastic responses in South American Anostomidae fish”, publicado pela revista Journal of Experimental Zoology-part B em novembro de 2019, de autoria de Bonini-Campos, B., Lofeu, L., Brandt, R. e Kohlsdorf, T. O artigo original pode ser acessado aqui.
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(Editoração: Fernando Mecca, Priscila Rothier e Caio Oliveira)