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Do que diferentes cérebros são feitos?

#Pesquisa ao seu alcance (Artigos científicos em linguagem simplificada)

Sobre
Categoria: Artigo – Revista Eletrônica Frontiers for Young Minds
Título original: What Are Different Brains Made Of?
Ano de publicação: 2017
Link do artigo original: https://kids.frontiersin.org/articles/10.3389/frym.2017.00021

Resumo

O cérebro é o órgão mais complexo que já evoluiu. Ele controla funções importantes no corpo como manter normais os batimentos do seu coração e sua respiração. Ele controla o movimento dos seus olhos ao longo da página conforme você lê esse texto, faz sentido da tinta no papel formando palavras, relaciona essas palavras a conceitos na sua memória e cria novos conceitos conforme você aprende. O cérebro também foi a parte do seu corpo que decidiu ler esse artigo, para começar. Em diferentes animais, os cérebros são bastante diferentes. Existem cérebros grandes e pequenos, lisos e enrugados, cérebros com algumas partes maiores do que outras. Como esses cérebros são construídos? Como eles se tornaram tão diferentes uns dos outros – e por que isso importa?

ANIMAIS COMPARTILHAM UMA HISTÓRIA EVOLUTIVA

Nem só os humanos têm cérebros, é claro. Quase todos os animais têm um sistema nervoso de algum tipo (apenas esponjas-do-mar não têm). Os cérebros de diferentes animais são diferentes em algumas coisas, mas similares em muitas outras. Isso é porque toda a vida no planeta compartilha uma história: todos os animais evoluíram de ancestrais em comum, portanto eles herdaram algumas características desses ancestrais. Isso é como um irmão e uma irmã que são parecidos por terem os mesmos pais, primos que têm os mesmos avós, primos de segundo grau que compartilham bisavós, e assim por diante. Toda a vida compartilha um tata-tata-tata-tataravô no passado distante.

Nós podemos utilizar essas semelhanças e diferenças entre animais para colocá-los em grupos. Duas aves – digamos, uma águia e um papagaio – têm mais em comum do que uma águia e um macaco. E eles são parentes mais próximos. Em uma família, isso seria como dizer que um irmão é mais parecido com sua irmã do que com seu primo. Um irmão e uma irmã têm os mesmos pais, mas com seu primo compartilham apenas os mesmos avós, uma geração mais distante. Ainda assim, todos os mamíferos têm pelos e produzem leite que alimenta seus filhotes. Toda ave tem penas e bota ovos. E essas similaridades entre parentes próximos aparecem em seus cérebros, também.

Cada espécie tem seus diferentes hábitos: um macaco salta de galho em galho até encontrar alguma fruta para comer, um morcego voa no escuro da noite entre as árvores, uma baleia nada no vasto oceano. Como os cérebros desses animais os ajudam a fazer todas essas tarefas, nós podemos supor que seus cérebros devem ser bem diferentes. Mas acontece que as principais partes do cérebro e as conexões dentro do cérebro são todas muito semelhantes para todos os mamíferos. Essa similaridade na estrutura do cérebro existe por causa da história evolutiva que todos esses cérebros compartilham.

De fato, se colocarmos cérebros de diferentes mamíferos lado a lado, as semelhanças são fáceis de se notar. Apesar de os cérebros variarem (e muito) em seu tamanho e suas dobras, todos eles têm as mesmas partes. Todos esses cérebros têm um córtex cerebral, um cerebelo, e um tronco encefálico (veja Figura 1A). Além disso, os mesmos tipos de células formam todos os cérebros: eles são feitos de neurônios, células gliais, e as células que formam os capilares (pequenos vasos sanguíneos) que levam sangue ao cérebro (Figura 1B). Os neurônios transmitem informação para outros neurônios por suas ramificações, através de conexões chamadas sinapses. Células gliais são de três tipos. A Micróglia são células do sistema imunológico no cérebro. Os oligodendrócitos envolvem as ramificações de neurônios e fazem com que a informação se mova mais rápido de um neurônio até o próximo. Os Astrócitos fazem várias coisas, mantendo tudo em ordem – desde ajudar neurônios a fazer sinapses até prover nutrientes para eles.

cérebros
Figura 1. A. Todos os cérebros têm 2 lados conectados, chamados de hemisférios esquerdo e direito. Na figura, você vê o lado de dentro do hemisfério direito de um cérebro humano. As suas principais partes são o córtex cerebral, o cerebelo e o tronco encefálico. O córtex cerebral, a “parte que pensa” do cérebro, é onde coisas como a fala, planejamento, emoções, e resolução de problemas são processados. Dependendo da espécie, o córtex cerebral pode ser liso ou cheio de dobras (como o nosso, na figura). O cerebelo parece um pequeno cérebro e também tem dobras. A manutenção de postura adequada, equilíbrio, e o controle de movimentos finos e delicados são tarefas que envolvem o cerebelo. Assim como pensar e lidar com emoções. O tronco encefálico é a região que conecta todo o cérebro com o corpo, através de vários nervos e a medula espinhal, e controla movimentos automáticos vitais como respiração, digestão, ritmo do coração, e pressão sanguínea. B. Neurônios (em dourado) – eles recebem, processam, e mandam informações para outros neurônios. Axônios (os “cabos” de um neurônio a outro) são envolvidos por células oligodendrócitos (azul), que criam uma cobertura, parecida com a capa de plástico em volta de fios elétricos, que isola os axônios e ajuda o sinal a ser conduzido de um neurônio ao próximo mais rapidamente. Os astrócitos (vermelho) têm muitas funções. Cientistas pensaram, inicialmente, que tudo que os astrócitos faziam era ocupar o espaço entre neurônios, mantendo-os separados e dando a eles uma espécie de “esqueleto” por fora. Mas agora nós sabemos que os astrócitos fazem muito mais: eles alimentam neurônios, controlam a formação de contatos entre neurônios (as sinapses) e como elas funcionam, controlam a concentração de muitas substâncias no espaço fora das células, e reparam lesões. Finalmente, a micróglia (roxo) detecta e destrói células estranhas que não pertencem ao cérebro, protegendo-o, como o sistema imunológico protege o restante do corpo. Imagem adaptada de Neves, da Cunha e Herculano-Houzel, 2017.

HÁ UMA ÚNICA REGRA PARA CONSTRUIR CÉREBROS?

Apesar de as partes serem as mesmas, isso não significa que os cérebros do mesmo tamanho são feitos com a mesma quantidade de cada tipo de célula. Também não é verdade que cérebros maiores sempre têm mais cérebros do que cérebros menores.

Nós podemos pensar sobre isso com um exemplo. Imagine que você recebe dois cérebros com o mesmo peso, mas pertencentes a diferentes espécies. Isso é o que vemos na Figura 2: um cérebro de macaco rhesus, e um cérebro de capivara (a capivara é o maior roedor vivo, ela se parece com um porquinho da índia gigante). Ambos cérebros pesam aproximadamente 80 g. Você provavelmente diria que os cérebros têm o mesmo número de neurônios – e assim diriam muitos cientistas. Até 10 anos atrás, a maioria dos pesquisadores esperava que cérebros do mesmo tamanho tivessem o mesmo número de neurônios. Eles pensavam que havia só uma “receita” na natureza para formar cérebros, e que todos os cérebros eram feitos da mesma forma. Isso também significava que quanto maior o cérebro, mais neurônios haveria.

Figura 2 – A natureza tem diferentes formas de adicionar neurônios a cérebros de primatas e roedores, conforme eles mudam de tamanho de uma espécie para outra. Isso significa que quando o cérebro de um roedor fica maior, ele não ganha muitos neurônios. Em contraste, quando um cérebro de primata fica maior, o número de neurônios cresce mais ou menos em proporção ao quão maior o cérebro é.

Nós sabemos agora que nenhuma dessas coisas é verdade. Em 2005, uma de nós (Suzana) desenvolveu um novo método que nos permite contar quantos neurônios constituem um cérebro [1]. Esse método dissolve o cérebro em uma sopa (Box 1), começando com um cérebro recentemente morto tratado com um produto químico chamado paraformaldeído (PFA) para fazer as células tornarem-se mais resistentes (se o cérebro não for tratado com PFA, você danificaria ele só de encostar). Se você não usar o método da sopa e, ao invés disso, pegar uma parte do cérebro e contar quantas células existem, você pode contar células de um lugar do cérebro que está cheio de neurônios, e então você pensaria que o cérebro todo tem um monte de neurônios. Mas o número de células não é o mesmo em todas as partes do cérebro – algumas partes do cérebro tem mais neurônios, outras menos. É por isso que fazemos a sopa de cérebro: porque assim, cada gota da “sopa” tem aproximadamente o mesmo número de células, desde que você misture a sopa muito bem. Além disso, como essa sopa tem todas as células que constituem a parte original do cérebro, ou talvez o cérebro todo (se você não separou as partes primeiro), então ao olhar sob o microscópio e contar as células em apenas um pouco da “sopa”, nós conseguimos ter uma boa ideia de quantas células o cérebro todo tem. Imagem adaptada de Neves, da Cunha e Herculano-Houzel, 2017.

BOX 1. COMO FAZER SOPA DE CÉREBRO

Aqui vai uma ideia: nós queremos pegar um cérebro e destruir tudo para fazer uma sopa – exceto os núcleos das células que constituem o cérebro. Como cada célula no cérebro tem apenas um núcleo, se nós tivermos o número de núcleos, nós encontramos o número de células que constituem aquele cérebro.

Passo 1: Coloque o cérebro em paraformaldeído (PFA) por alguns dias. Esse processo é chamado fixação. O PFA vai tornar as membranas dos núcleos mais fortes, para que elas não se quebrem depois.

Passo 2: Separe a parte do cérebro sobre a qual você quer saber. Então, fatie em pequenos pedaços.

Passo 3: Coloque o tecido cerebral fatiado dentro de um “vidro de fazer sopa”. Essa ferramenta é feita de duas partes de vidro, cuidadosamente construída para que quando uma está dentro da outra o espaço entre os vidros seja muito, muito pequeno (procure por “glass tissue grinder” na internet para ver algumas fotografias).

Passo 4: Adicione um detergente para ajudar a quebrar o tecido. Use um detergente especial que não vá destruir a membrana do núcleo (lembre-se, nós as queremos preservadas para que possamos contar os núcleos na sopa).

Passo 5: Mova o vidro de dentro para cima e para baixo, e rode-o, para quebrar o tecido cerebral. Isso é chamado fracionamento. Ao esfregar essas duas peças de vidro uma contra a outra, a fricção quebra as partes do cérebro em peças menores e menores, eventualmente deixando apenas os núcleos das células (que é o que nós contamos no microscópio). Isso é meio como fazer suco: você pressiona o cérebro contra o vidro, assim como uma fruta pressionada contra o espremedor para extrair seu suco).

Vamos pegar cérebros imaginários novamente, dessa vez de dois cérebros de primatas, um com o dobro do tamanho do outro. Quantos neurônios o maior deles teria? Bom, nesse caso, aproximadamente o dobro do número de neurônios do menor. Mas se todos os cérebros fossem feitos da mesma maneira, com a mesma receita uniforme, nós observaríamos a mesma coisa nos roedores. Então, se agora nós pegarmos dois cérebros de roedores, um com o dobro do tamanho do outro, nós esperaríamos que o maior tivesse o dobro de neurônios do que o menor. Mas se você fizer isso com cérebros de verdade, você verá que cérebros maiores de roedores têm menos neurônios do que o esperado – menos do dobro de neurônios em um cérebro com o dobro do tamanho. Isso significa que roedores e primatas têm diferentes regras para construir cérebros. Mais importante, se você comparar o cérebro de um primata relativamente grande (como o cérebro de um macaco) com um cérebro grande de roedor (como o cérebro de uma capivara), você notaria que o cérebro do macaco que muito mais neurônios do que o cérebro de roedor.

As diferentes relações entre tamanho de cérebro e número de neurônios, em roedores e primatas, significam que diferentes receitas, ou “regras”, se aplicam quando esses cérebros são feitos na natureza. A regra para primatas diz “se você tiver 10 vezes mais neurônios, você tem um cérebro 10 vezes maior). A regra para roedores diz “se você tiver 10 vezes mais neurônios, você tem um cérebro 45 vezes maior”. As diferentes regras significam que os cérebros de roedores crescem muito mais rápido do que os de primata conforme eles ganham neurônios. Assim, sem saber que as regras são diferentes, você assumiria que cérebros de primatas têm menos neurônios do que têm de fato. Mas a verdade é que há muito mais neurônios no cérebro de um primata do que de um roedor do mesmo tamanho. Para ver isso em números reais, você pode olhar os exemplos na Figura 2.

TESTANDO E MUDANDO AS REGRAS

Mas como seriam as coisas se nós fossemos roedores? E se, ao invés de um cérebro de primata de 1,5 kg, nós tivéssemos um cérebro de roedor de 1,5 kg? Nós podemos fazer as contas para descobrir: o cérebro teria apenas 19 bilhões de neurônios, muito menos que nossos 86 bilhões – e o cérebro provavelmente seria capaz de fazer muito menos coisas. Agora, vamos inverter a questão: quão grande teria de ser um cérebro de roedor para ter 86 bilhões de neurônios, como os nossos? Bem, muito grande. Ele pesaria mais de 30 kg! Esse roedor imaginário precisaria de um corpo de 80 toneladas para carregar um cérebro tão grande – isso é o peso de 20 elefantes juntos, como mostrado na Figura 3! Um roedor tão gigante nunca poderia existir: seu cérebro seria esmagado por seu próprio peso (lembre-se de que o cérebro não tem uma estrutura interna para suportá-lo, como um esqueleto sólido). Não é à toa que tal roedor enorme nunca tenha aparecido na história da vida.

Figura 3 – Se houvesse um roedor com tantos neurônios quanto um humano tem – 6 bilhões – seu cérebro pesaria mais de 30 kg. Isso significa que esse roedor hipotético precisaria de um corpo de 80 toneladas para carregar o cérebro superpesado. Para dar uma ideia de como esse super roedor teria que ser, imagine colocando-o em uma balança: ele pesaria o mesmo que 20 elefantes!

Outros tipos de mamíferos estudados até agora – morcegos, insetívoros, carnívoros, marsupiais, e cetáceos – têm muito em comum, mas também muitas diferenças. Parece que a natureza tem muitas receitas, ou regras, para fazer cérebros. Há muita diversidade em cérebros, assim como diferentes tipos de animais têm aparências externas diferentes. Mas primatas são aqueles que têm mais neurônios no córtex cerebral, a parte “pensante” do cérebro, comparados com outras espécies que tenham cérebros de tamanho similar. Isso não significa que tudo é diferente no cérebro primata. Lembre que todos os animais compartilham tata-tata-tata-tataravós de muitos anos atrás, e algumas das regras para cérebros são compartilhadas. Só como um exemplo rápido: a regra relacionando o número de células gliais (lembra-se delas? Veja na Figura 1) com o tamanho do cérebro é a mesma para todos os grupos de mamíferos. Como isso é comum a todos os mamíferos, nós achamos que essa relação deve ser muito importante para o cérebro funcionar bem.

Toda essa informação sobre regras de cérebros é importante por muitas razões. O cérebro humano não é o maior de todos os cérebros. Por exemplo, o maior mamífero terrestre, o elefante, tem um córtex cerebral que pesa o dobro do que o córtex humano. Entretanto, porque os cérebros de diferentes animais são feitos de formas diferentes, o córtex gigantesco de elefantes tem apenas um terço dos neurônios que humanos têm em seus córtex cerebrais [3, 4]. A lição aqui é que tamanho pode ser importante, mas está longe de ser tudo quando comparamos cérebros. Por causa das diferentes “receitas” que a natureza usa para fazer cérebros, comparar cérebros primatas com cérebros roedores é como comparar maçãs com laranjas. Além disso, se nós quisermos saber sobre as habilidades de um animal, o número de neurônios deve importar muito mais do que o tamanho do cérebro. Isso porque os neurônios são as células que processam toda a informação que o cérebro recebe, transformando-as em ação. Então ter mais neurônios provavelmente é melhor para as habilidades do cérebro – pelo menos enquanto o cérebro não se tornar grande demais!

 

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram que a pesquisa foi conduzida na ausência de qualquer relação comercial ou financeira que possa ser interpretada como potencial conflito de interesses.

Tradução:

Fernando F. Mecca  sobre o tradutor           

Fernando F. Mecca é biólogo, professor e cientista. Mestre e doutorando em Neurociências, estuda os efeitos da depressão e antidepressivos sobre funções elétricas do cérebro. Também se interessa em educação e divulgação científica.

Artigo Original:

Neves, K., da Cunha, F. e Herculano-Houzel, S. (2017) What Are Different Brains Made Of?. Front. Young Minds. 5:21. doi: 10.3389/frym.2017.00021

Fontes:

[1] Herculano-Houzel, S., and Lent, R. 2005. Isotropic fractionator: a simple, rapid method for the quantification of total cell and neuron numbers in the brain. J. Neurosci. 25(10):2518–21. doi:10.1523/JNEUROSCI.4526-04.2005

[2] Azevedo, F. A., Carvalho, L. R., Grinberg, L. T., Farfel, J. M., Ferretti, R. E., Leite, R. E., et al. 2009. Equal numbers of neuronal and nonneuronal cells make the human brain an isometrically scaled-up primate brain. J. Comp. Neurol. 513(5):532–41. doi:10.1002/cne.21974

[3] Herculano-Houzel, S., Manger, P. R., and Kaas, J. H. 2014. Brain scaling in mammalian evolution as a consequence of concerted and mosaic changes in numbers of neurons and average neuronal cell size. Front. Neuroanat. 8:77. doi:10.3389/fnana.2014.00077

[4] Herculano-Houzel, S., Avelino-de-Souza, K., Neves, K., Porfírio, J., Messeder, D., Mattos Feijó, L., et al. 2014. The elephant brain in numbers. Front. Neuroanat. 8:46. doi:10.3389/fnana.2014.00046

(Editoração: Beatriz Spinelli e Loren Pereira)

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