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O cérebro emocional

#Ao seu alcance (Artigos científicos em linguagem simplificada)

Treinando seu cérebro emocional: da ficção científica à neurociência

Sobre
● Categoria: Artigo – Revista Eletrônica Frontiers for Young Minds
● Título Original: Training Your Emotional Brain: From Science Fiction to Neuroscience
● Ano de publicação: 2016
● Link do artigo original: https://kids.frontiersin.org/articles/10.3389/frym.2016.00021

Resumo

Neurociência é um campo interdisciplinar (incluindo psicologia, biologia, física e química), que visa estudar o sistema nervoso, incluindo o cérebro. Nosso projeto de pesquisa de neurociência começa com uma história de ficção científica: no futuro, androides (robôs feitos de carne e osso) tornam-se virtualmente idênticos a humanos, exceto pela ausência de emoções profundas, tais como empatia (a habilidade de entender como outros estão se sentindo). E se, na vida real, nós pudéssemos achar uma maneira de dizer se alguém está tendo sentimentos empáticos só por uma medida de atividade cerebral? E, ainda mais, e se pessoas pudessem aumentar seus sentimentos de amor, ternura, ou afeição usando informações de sua própria atividade cerebral? Esse é nosso objetivo – fazer pessoas mudarem suas próprias funções cerebrais enquanto recebem informações sobre seus cérebros. Nós pedimos a 24 voluntários para entrarem em um scanner de imagem por ressonância magnética que mede atividade cerebral. Dentro dessa máquina, elas foram instruídas a pensar sobre pessoas importantes em suas vidas enquanto olhavam às suas próprias atividades cerebrais em um monitor – um processo chamado de “neurofeedback”. Os voluntários que receberam esse feedback foram capazes de aumentar a atividade de seus cérebros que é associada com empatia. Essa evidência nos diz que talvez as pessoas possam alterar os estados emocionais de seus cérebros e aumentar seus sentimentos de empatia.

 

Tecnologias de filmes de ficção científica e livros às vezes tornam-se realidade. Nosso projeto de pesquisa foi inspirado em uma história de ficção científica de um livro de Phillip K. Dick chamado “Andróides Sonham Com Ovelhas Elétricas?” (1968), que mais tarde foi transformado em um filme chamado “Blade Runner” (1982). A história se passa no ano de 2019, quando androides feitos de carne, ossos e cérebros artificiais se tornam tão similares a humanos que dificilmente poderiam ser reconhecidos como “máquinas”. Um dispositivo de detecção teve de ser utilizado para encontrar a única diferença entre androids e humanos: o fato de que apenas humanos podem ter emoções profundas, realmente se importar por outra pessoa, e experienciar o que outra pessoa está sentindo – algo que nós chamamos de empatia.

Emoções empáticas como a afeição são muito importantes para humanos, já que a habilidade de construir e sustentar conexões com outras pessoas é crítica para nosso bem-estar e sobrevivência [1]. Essas emoções empáticas são importantes para coisas como relacionamentos amorosos, o cuidado de uma mãe para com seus filhos, espírito de equipe, e cooperação, ou até algo tão simples quanto ajudar um amigo. Essas emoções também levam a comportamentos, como altruísmo, que ajuda pessoas a viverem juntas em sociedade [2]. Assim, da mesma forma que na história de ficção científica, essas emoções empáticas são uma parte importante do que nos faz humanos. Estudos anteriores demonstraram que regiões específicas do cérebro são importantes para essas emoções [3].

A neurociência é o estudo científico do sistema nervoso: o que ele faz, sua estrutura, e como ele se desenvolve. Como neurocientistas que estão profundamente interessados em investigar funções cerebrais e suas conexões com o comportamento humano, nós nos perguntamos: “e se, na vida real, nós pudéssemos encontrar uma forma de ‘ler’ sentimentos empáticos através de medidas de atividade dos cérebros de pessoas em tempo real?” Inspirados por recentes estudos de neurociência em que imagens de cérebros foram examinadas (chamados de estudos de neuroimagem), enquanto pessoas tentavam mudar as funções de seus próprios cérebros, nós então perguntamos: “e se uma pessoa puder aumentar seus sentimentos empáticos usando informações das suas próprias atividades cerebrais?” Essa técnica é chamada neurofeedback. Feedback é a informação sobre o quão bem você está indo em uma área em particular. Neste caso, nós chamamos de “neurofeedback” porque o feedback está vindo do cérebro e os participantes estão usando o conhecimento de seus próprios sinais cerebrais para modificar a atividade do cérebro.

Para este estudo, nós recrutamos 24 pessoas de universidades locais e laboratórios de pesquisa. Essas pessoas foram colocadas em um scanner de imageamento por ressonância magnética, que mede a atividade cerebral usando o nível de oxigênio no sangue (Figura 1). O princípio geral desta técnica, chamada IRM funcional, é o seguinte: quando nós usamos uma parte de nosso cérebro para, por exemplo, mover nossa mão ou pensar sobre um ente querido, mais sangue com oxigênio é recrutado para partes específicas do cérebro que contribuem para aquela função. Baseados nesses princípios, cientistas podem usar o scanner IRM para mostrar qual parte do cérebro está ativa quando certa tarefa está sendo executada.

cérebro neurociência
Figura 1. Um Scanner IRM em um cenário experimental. A imagem mostra um participante sendo preparado pelo experimentador para entrar na máquina, onde ele vai tentar modular sua própria atividade cerebral. Imagem: adaptado de Bado, P., Stewart, M. e Moll, J., 2016.

Dentro da máquina de IRM, os participantes eram instruídos a pensar em memórias felizes envolvendo pessoas que eles amam (família ou amigos) e a sentir sentimentos calorosos como afeição e ternura. O experimento foi dividido em sessões de treino e feedback: durante o treino, os participantes deveriam apenas pensar sobre seus entes queridos; após a sessão de treino, os participantes fizeram a mesma coisa, mas dessa vez, enquanto pensavam sobre memórias felizes e amorosas e sentimentos calorosos, eles também observavam a uma tela de computador que dava o neurofeedback aos participantes – a tela mostrava a eles imagens que representavam suas atividades cerebrais. Essas imagens diziam a eles se a atividade cerebral de seus cérebros era ou não a mesma que na sessão de treino. Nesse experimento, as imagens de neurofeedback consistiam em formatos anelares que variavam em seus contornos, desde anéis lisos até anéis irregulares (veja Figura 2). Quanto mais lisos os anéis que os participantes viam conforme sentiam sentimentos empáticos, mais próxima era a atividade cerebral daquele momento em comparação com a primeira vez que estiveram no IRM, sem o neurofeedback. Se o anel estivesse irregular, isso significava que eles não estavam sentindo aqueles sentimentos calorosos tão claramente quanto da primeira vez. Assim, se eles vissem um anel irregular, os participantes podiam tentar sentir mais os sentimentos calorosos, e se eles conseguissem, o anel ficaria mais liso.

Figura 2. Dicas visuais usadas como feedback. A imagem mostra anéis de feedback com diferentes quantidades de irregularidade de acordo com a atividade cerebral medida. Um anel perfeito (direita, embaixo) representa o padrão cerebral mais claro atingido pelo participante, enquanto o anel mais irregular (esquerda, no topo) representa o padrão menos claro associado a sentimentos empáticos. Imagem: adaptado de Bado, P., Stewart, M. e Moll, J., 2016.

Caso você esteja se perguntando a razão de termos escolhido usar um formato de anel, foi para evitar usar imagens que podiam, elas próprias, influenciar a atividade cerebral. Por exemplo, se nós mostrássemos imagens de pessoas, cenas complexas, ou até cores básicas, essas imagens sozinhas poderiam ativar áreas emocionais do cérebro, complicando o experimento.

DE VOLTA A NOSSO EXPERIMENTO

Em pesquisas científicas, nós sempre precisamos do que chamamos um “grupo controle” para ter certeza de que os efeitos que estamos medindo são realmente causados pelo experimento que estamos fazendo, e não são só aleatórios. Para ter certeza de que nossos resultados não eram só aleatórios, nós designamos nossos participantes a um de dois diferentes grupos: um grupo que recebeu o neurofeedback real sobre sua atividade cerebral conforme descrito acima (o grupo neurofeedback) e o outro grupo ao qual eram mostradas imagens de anéis mudando aleatoriamente, que na verdade não tinham nada a ver com suas atividades cerebrais (o grupo controle). Esses participantes controle não sabiam que havia um grupo neurofeedback separado, e eles foram informados de que os anéis na tela eram mostrados apenas para ajudá-los a focar na tela e manter seus olhos abertos.

Nós tínhamos outro grupo controle, também. Neste controle, os participantes foram solicitados a pensar em memórias nas quais eles sentiam sentimentos fortes e positivos de realização e orgulho na presença de outras pessoas (por exemplo, vencendo uma competição de natação). Esse controle foi importante para checar se nossos resultados eram realmente específicos para emoções empáticas ou se eles eram verdadeiros para emoções positivas em geral.

Até aí tudo bem. Mas o que finalmente aconteceu ao cérebro dos participantes no fim do “treinamento cerebral”? Aqueles que viram seus próprios cérebros refletidos pelas formas de anéis mostradas na tela e então mudaram suas atividades trabalhando para aumentar seus sentimentos empáticos (grupo neurofeedback) foram capazes de realmente aumentar esses sentimentos, mostrando padrões cerebrais mais consistentes associados a essas emoções do que o grupo controle. Mais precisamente, o grupo neurofeedback aumentou os padrões de atividade cerebral associados à empatia. As regiões cerebrais que esses participantes foram capazes de ativar quando sentindo essas emoções empáticas incluem duas áreas com nomes complicados: o córtex frontopolar e a área septohipotalâmica (Figura 3).

Figura 3. Regiões cerebrais com ativação aumentada após treino com feedback. A imagem mostra que duas áreas do cérebro, a área septohipotalâmica e o córtex frontopolar (setas pretas contornadas em laranja) tiveram atividade aumentada depois do treinamento cerebral. Esse aumento em ativação só foi observado no grupo neurofeedback, não nos grupos controle. Imagem: adaptado de Bado, P., Stewart, M. e Moll, J., 2016.

Além disso, só por usar os padrões de atividade na tela de computador, nós também fomos capazes de dizer quais estados emocionais eles estavam imaginando (ternura/empatia ou orgulho) em qualquer ponto no tempo. Isso parece muito como “ler o cérebro” como aparece em alguns filmes de ficção científica! Mas, nesse caso, nós somos capazes de “ler o cérebro” em um estado emocional muito complexo e muito específico, de sentimentos de ternura/empatia. Porque nós tínhamos dois estados emocionais para escolher – empatia ou orgulho – um palpite às cegas sobre o estado cerebral seria equivalente a chance de acertar qual lado cairia pra cima ao jogar cara e coroa, dando-nos um total de uma em duas chances de acertar (50%). Nosso resultado neste experimento foi de uma taxa de 75% de acerto na classificação do estado cerebral, significando adivinhar se os pacientes estavam sentindo ternura ou orgulho. Nós achamos esse um resultado incrível!

Em suma, nosso estudo demonstra que pessoas podem usar informações sobre suas próprias atividades cerebrais relacionadas à empatia para mudar seus estados emocionais cerebrais, o que tem importantes aplicações na vida real. Talvez, em um futuro próximo, seja possível treinar pessoas para sentir empatia a fim de melhorar relacionamentos humanos e promover maior bondade entre as pessoas. Quem sabe?!

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram que a pesquisa foi conduzida na ausência de quaisquer relacionamentos comerciais ou financeiros que poderiam constituir potenciais conflitos de interesse.

 

Colaboração:

Fernando F. Mecca sobre o autor           

Fernando é biólogo, professor e cientista. Mestre e doutorando em Neurociências, estuda os efeitos da depressão e antidepressivos sobre funções elétricas do cérebro. Também se interessa em educação e divulgação científica.

Artigo Original:

Bado P., Stewart M. e Moll J. (2016) Training Your Emotional Brain: From Science Fiction to Neuroscience. Front. Young Minds. 4:21. doi: 10.3389/frym.2016.00021

Referências:

[1] Insel, T. R., and Young, L. J. 2001. The neurobiology of attachment. Nat. Rev. Neurosci. 2(2):129–36. doi:10.1038/35053579

[2] Moll, J., de Oliveira-Souza, R., Garrido, G. J., Bramati, I. E., Caparelli-Daquer, E. M., Paiva, M. L., et al. 2007. The self as a moral agent: linking the neural bases of social agency and moral sensitivity. Soc. Neurosci. 2(3–4):336–52. doi:10.1080/17470910701392024

[3] Moll, J., Bado, P., de Oliveira-Souza, R., Bramati, I. E., Lima, D. O., Paiva, F. F., et al. 2012. A neural signature of affiliative emotion in the human septohypothalamic area. J. Neurosci. 32(36):12499–505. doi:10.1523/JNEUROSCI.6508-11.2012

(Editoração: Loren Pereira)

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