Vacinas preparam seu corpo para enfrentar doenças, mas por que parece tão simples fazê-las contra alguns micróbios, e não contra outros?
Destaques: – Vacinação é importante para o combate a diversas doenças, como a varíola; – Alguns patógenos sofrem muitas mutações, evitando um efeito a longo prazo das vacinas, como na gripe; – Outros patógenos “escondem” moléculas que poderiam ser alvo das vacinas, como o HIV; – Moléculas e ferramentas novas são pesquisadas para avançarmos na criação de novas vacinas. |
A vacinação é uma das maiores conquistas da saúde pública dos últimos 100 anos. Ela foi – e ainda é – fundamental para o controle e a prevenção de doenças pelo mundo todo. Inclusive, foi através da vacinação que conseguimos até mesmo erradicar uma delas: a varíola, em 1979.
O objetivo da vacinação é apresentar ao nosso corpo uma versão inofensiva de vírus ou bactérias que causam doenças. A ideia é fazer com que o nosso corpo gere uma resposta protetora e duradoura contra esses agentes. De forma simples, o que a vacinação faz é simular um processo que aconteceria naturalmente no nosso organismo se encontrássemos um patógeno. Porém, muitas doenças que hoje são prevenidas através da vacinação podem deixar sequelas, como é o caso da poliomielite (“pólio” ou “paralisia infantil”), ou até levar à morte, como a pneumonia. Ou seja, pegar a doença e deixar o corpo lutar contra ela naturalmente é muito perigoso. Assim, a vacinação é uma maneira de treinar o corpo para neutralizar os efeitos dessas doenças.
Apesar de ser uma estratégia antiga e comprovadamente eficaz, não existem vacinas para todos os tipos de doenças. Atualmente, as vacinas são utilizadas, principalmente, para a prevenção de doenças infecciosas, ou seja, aquelas causadas por patógenos, mas há pesquisas pelo mundo todo tentando desenvolver vacinas para câncer, por exemplo.
Então, por que vacinas são eficazes para algumas doenças e não outras?
A resposta mais curta, e nada satisfatória, é que cada doença é diferente!
Primeiro, precisamos entender que as vacinas fazem o corpo produzir anticorpos – moléculas com a forma de Y – específicos para partes do vírus ou da bactéria de interesse. Quando esses patógenos entram no corpo pela segunda vez, os anticorpos produzidos pela vacinação se ligam a ele, em um processo chamado neutralização. Isso impede os vírus e as bactérias de entrarem e infectarem as células. Uma vez neutralizados pelos anticorpos, os patógenos são “engolidos” por determinadas células do sistema imune, que os destruirão.
Mas, para algumas doenças, a imunidade feita apenas por anticorpos não é suficiente para a proteção. No caso da AIDS, por exemplo, também é preciso que as células do sistema imune destruam as células infectadas. Assim, o sucesso da vacinação depende de várias propriedades dos patógenos, considerando que os próprios patógenos também são diferentes: podem ser vírus, bactérias ou protozoários.
Para entender melhor como as diferenças entre as doenças impactam a eficácia das vacinas, vamos a alguns exemplos.
Gripe
Diferente da vacina contra o sarampo, que tomamos apenas duas doses quando criança e ficamos protegidos, temos que tomar a vacina da gripe todo ano. A razão para isso é que o vírus da gripe (conhecido como vírus Influenza A) sofre muitas mutações quando se reproduz dentro das células. Por causa dessas mutações, as proteínas do Influenza mudam e deixam de ser reconhecidas pelos anticorpos produzidos pela vacina do ano anterior. Acontece que, mesmo se não tomarmos a vacina anual para Influenza, os anticorpos gerados por gripes ou vacinações anteriores ainda podem reconhecer certas proteínas do Influenza atual, um evento chamado “imunidade heterossubtípica”, o que pode dar uma chance de neutralizar o vírus.
HIV
O maior desafio de uma vacina contra o HIV (sigla em inglês para Vírus da Imunodeficiência Humana), causador da AIDS, é que o vírus sofre mutações tão rapidamente que quando os anticorpos ficam prontos, o vírus já está diferente. Isso acontece pois as moléculas que o vírus do HIV deixa expostas em sua superfície estão sempre variando quando este se reproduz dentro das células, enquanto as moléculas conservadas – que não mudam e são as quais o vírus precisa para infectar as células – ficam escondidas, o que impede os anticorpos de se ligarem a elas.
Dengue
O vírus da dengue, apesar de uma única espécie, existe como quatro tipos imunológicos (sorotipos): DEN-1, DEN-2, DEN-3 e DEN-4. Todos eles causam a doença, e a infecção por um desses sorotipos gera imunidade permanente para o mesmo sorotipo e temporária para os outros. Um dos problemas da dengue é uma complicação causada pela reinfecção, conhecida como dengue hemorrágica. Ainda não se sabe ao certo como isso ocorre, mas a hipótese mais recente é a da “amplificação dependente de anticorpo”. De acordo com ela, durante uma reinfecção com um sorotipo novo, os anticorpos produzidos na primeira infecção se ligam no vírus novo, mas não o neutralizam. Assim, quando os vírus ligados aos anticorpos são engolidos pelas células imunes para serem destruídos, eles se reproduzem lá dentro e promovem uma nova infecção – quase como um “Cavalo de Tróia”. Essa infecção passa despercebida pelo sistema imune, pois ele já está produzindo anticorpos para um vírus da dengue.
Esse foi o grande desafio enfrentado pelo Instituto Butantan durante anos para a produção da vacina da dengue. Os resultados promissores vieram apenas neste ano, quando o Instituto anunciou que a vacina da dengue produzida por eles consegue imunizar contra os 4 sorotipos da doença em uma única dose. Assim, se as pessoas contraírem dengue após a vacinação, teriam anticorpo para todos os sorotipos, sem risco de desenvolver dengue hemorrágica. Esta vacina já está em fase avançada de testes.
Pneumonia
A variação através de sorotipos é uma estratégia que a bactéria Streptococcus pneumoniae também usa para fugir do sistema imune. Apesar de ser uma espécie só, a S. pneumoniae possui variações de sua capa de carboidratos (cápsula polissacarídica), uma cápsula que envolve a célula bacteriana. Há descrições de pelo menos 90 sorotipos (subtipos) de cápsula que circulam pela população mundial. Desse modo, anticorpos produzidos contra o sorotipo 4, por exemplo, não protegem contra o 19 e por aí vai. A estratégia que criamos foi, então, identificar os principais sorotipos que causam a doença e vacinar a população contra esses subtipos. Graças a isso, hoje existem dois tipos de vacinas para a pneumonia: a PPV-23, que protege contra 23 sorotipos, indicada para adultos, idosos e crianças, e a PCV-13, que protege contra 13, indicada para crianças com menos de 2 anos.
Como vimos, cada doença tem sua especificidade e oferece desafios diferentes para a formulação de vacinas. A busca por uma vacina contra a malária, por exemplo, segue em desenvolvimento, devido à complexa biologia do protozoário causador da doença. Ainda assim, à medida que a própria ciência avança – com a descoberta de novas moléculas, novas técnicas e ferramentas – mais perto ficamos também de desenvolvermos vacinas contra essas doenças.
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Especial “UP Vacinas”: Mariana Gonçalves sobre a autora
Fontes consultadas:
– Kallas, E.; Preciosos, A.; Palacios, R; et al. Safety and immunogenicity of the tetravalent, live-attenuated dengue vaccine Butantan-DV in adults in Brazil: a two-step, double-blind, randomised placebo-controlled phase 2 trial. Lancet Infectious Diseases. 2020;
– Iamarino, A. A vacina contra gripe: Produção (Disponível aqui);
– Murphy, K.; Weaver, C. Janeway’s Immunobiology. 9a ed. Editora: Garland Science. 2017;
– Murphy, K.; Travers, P., Walport, M. Imunobiologia de Janeway. 7a ed. Editora: Artmed. 2010.
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(Editoração: Beatriz Spinelli, Fernando Mecca e Caio Oliveira)