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Desigualdades socioambientais para além da pandemia

#Ciência et al. (Especiais temáticos repletos de informações científicas)

Abastecimento de água e saneamento básico agravam as dificuldades da população, não só durante a crise do COVID-19

Destaques:
– A desigualdade socioambiental não é um fenômeno natural, mas um problema político, econômico e social de privação dos bens naturais;
– As mulheres e as populações pobres, em sua maioria pretos e pardos, vivenciam de modo mais profundo as desigualdades socioambientais;
– As privatizações dos serviços de abastecimento de água e saneamento básico não resultam em melhorias, ao contrário, intensificam as desigualdades.

Ao longo das últimas décadas, a temática ambiental ganhou proporções relevantes e tornou-se uma questão global. Consoante a este novo cenário, novas preocupações, que não se restringiram aos debates propostos pela sociologia rural, vieram à tona, estendendo-se ao que se convencionou chamar de “questões ambientais”. Dentre os eixos centrais da moderna questão ambiental, emergida no final dos anos 1970, estão a tomada de consciência sobre a crise ambiental contemporânea; a atuação de Estados nacionais e organizações multilaterais na implementação de políticas para frear a degradação ambiental; bem como o questionamento do ideal de neutralidade e de salvação da ciência e do progresso técnico. 

Em grande medida, foram os sucessivos episódios de acidentes ecológicos, como o advento da bomba atômica e o derramamento de petróleo no ambiente marítimo, que chamaram a atenção da comunidade científica e da sociedade civil, alertando para os desafios da sobrevivência humana caso não cessasse, ou pelo menos reduzisse, a interferência da humanidade sobre a natureza. Respaldado por estes novos olhares e gritos de preocupação, o meio ambiente passou a ocupar um espaço importante no contexto político e sucessivas conferências foram elaboradas, a fim de minimizar a atuação dos humanos contra o meio ambiente. A título de exemplo, podemos destacar a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, realizada em Estocolmo (1972), e a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada em 1992 no Rio de Janeiro.  

Contudo, ainda que ciência e política tenham se mobilizado para ordenar e conter os problemas ambientais, ano a ano, dia a dia, nos deparamos com novas catástrofes: rompimento de barragem de rejeitos de minérios, crescimento do desmatamento, derramamento de petróleo nos mares e, porque não citar, o aparecimento de novos vírus causadores de pandemias. No caso da atual pandemia da COVID-19, há um elemento que precisa ser mobilizado, sobretudo reconhecido, como ponto de intersecção entre a causa do surgimento do vírus e uma das únicas vias para combater sua disseminação. A rigor, a questão ambiental é este elemento que não pode ser isolado e nem ignorado, seja para responder a questões múltiplas e complexas sobre o aparecimento do Sars-CoV-2, seja para vislumbrar mudanças efetivas a fim de evitar novos episódios catastróficos como o atual. De modo mais explícito, reconhecer a questão ambiental como categoria central e transversal na contemporaneidade nos possibilita desenvolver uma crítica ao processo civilizatório de origem europeia, que tem na ideia de dominação da natureza um de seus pilares. Podemos assim identificar as catástrofes ambientais como resultado de uma dimensão epistêmica, política, econômica e técnica que é predatória e destrutiva. 

Ainda frisando o caso da atual pandemia, nos deparamos com outra dimensão ambiental que é central: a importância do acesso à água potável no combate à disseminação do coronavírus. Diante desta constatação, sobretudo nos países periféricos, a preocupação em torno das desigualdades socioambientais ganhou espaço no debate público, visto que cientistas previam uma realidade catastrófica quando o vírus atingisse certas regiões do país. Dados recentes do Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS) justificam tal preocupação quando apontam que, no ano de 2018, menos de 50% da população brasileira teve acesso a esgoto tratado e 16,4% de brasileiros e brasileiras não tiveram abastecimento de água potável. Repito: há apenas dois anos, quase 35 milhões de pessoas não tiveram acesso à água potável no Brasil.  

Se o contexto do novo coronavírus levantou o mau cheiro desta realidade, os estudos sociológicos já vinham destacando este cenário de desigualdade socioambiental ao correlacionar indicadores sociais e indicadores de saúde, ou seja, inter-relacionando cenários de pobreza e a incidência de contaminação por falta de acesso à água potável e esgoto tratado, ou ainda evidenciando os múltiplos impactos da desigualdade de acesso à água aos cidadãos brasileiros. É aqui que este ensaio se insere:  traz para o centro da reflexão um olhar sociológico acerca das desigualdades socioambientais e os impactos no cotidiano familiar, especificamente, daqueles que sofrem com a desigualdade de abastecimento hídrico em Salvador, Bahia. A reflexão colocará luz às dimensões do público (contexto escolar) e do privado (casa), isso porque, dentre os vários resultados, chamou a atenção o efeito cascata do desabastecimento hídrico que impacta o contexto escolar e, por consequência, impõe um reordenamento interno nos lares. Para os propósitos desta reflexão, trazemos à cena três regiões de Salvador que apresentam grande incidência de desabastecimento hídrico, são elas: Cabula, Fazenda Grande do Retiro e Lauro de Freitas. Para cada região, foi trabalhado com uma escola pública, seja municipal ou estadual.  


O desabastecimento hídrico e os impactos sociais

Diversos autores, os quais debatem as mudanças ambientais globais, compreendem que as problemáticas que envolvem a água (crise de hídrica, gestão dos recursos hídricos, privatização, poluição, entre outros) são os aspectos mais graves, e também mais invisíveis e silenciosos, da atual devastação ecológica do planeta. Ainda que se entenda a importância dos debates internacionais, conferências e instauração de metas para assegurar água potável e saneamento básico para a população mundial, como previsto na Conferência das Nações Unidas sobre a Água, realizada no ano de 1977, ainda são necessárias grandes mudanças para transformar o cenário em que nos encontramos. A tão sonhada e esperada mudança virá, apenas, quando entendermos que uma crise ecológica não será solucionada por vias capitalista e mercadológica, mas com base em uma mudança de paradigma e modelo, como a criação de uma democracia ecológica. Isso explica a persistência da desigualdade ambiental e dos desastres ambientais no mundo, pois nos deparamos com medidas que conservam e persistem a dominação da natureza.  

Dando continuidade, a sociologia afirma que as desigualdades ambientais não são fenômenos naturais, mas se inscrevem, sobretudo, como um problema político, econômico e social de privação dos bens naturais. Outro ponto substancial para compreender as nuances que circundam este debate consiste no reconhecimento de que não é qualquer corpo que vivencia esta experiência de violência e desigualdade; ao contrário, é um corpo marcado, definido, tecido pelas relações de classe, gênero, raça e etnia. Dito de outra forma, as populações pobres, em sua maioria pretos e pardos, vivenciam de modo mais profundo as desigualdades socioambientais. 

Se avaliarmos, por exemplo, as macrorregiões brasileiras, a Região Nordeste, que concentra a maior proporção de autodeclarados pretos e pardos, dispõe do segundo pior índice nacional de rede de abastecimento de água potável e coleta de esgoto, ficando atrás apenas da Região Norte. Dados apontam que 74,2% das residências nordestinas são abastecidas com água potável, e apenas 28% possuem coleta de esgoto (SNIS, 2018). E dentre os domicílios que possuem rede geral como principal forma de abastecimento de água, constatou-se que a Região Nordeste apresenta uma distribuição precária, com grande intermitência no abastecimento de água. De modo mais específico, apenas 69% da população nordestina tem suas casas diariamente abastecidas com água potável e quase 15% da população tem acesso à água de 1 a 3 vezes na semana. Enquanto na região Sul, a maior cobertura hídrica diária do país, 97% da população tem suas casas diariamente abastecidas com água potável (IBGE, 2020). 

Salvador, terceira cidade mais populosa no país e sexta região metropolitana brasileira em termos demográficos, ainda sofre com condições precárias de esgotamento sanitário e de distribuição de água. Ambos os serviços estão a cargo do Governo do Estado da Bahia e da Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A (Embasa).  Contudo, a prestação destes serviços tem se mostrado defasada e ineficaz, principalmente nas regiões periféricas da capital. Isso porque, embora a cobertura da rede de distribuição de esgotamento sanitário atinja aproximadamente 93% da população (IBGE, 2010), o fornecimento de água ainda é desigual, intermitente e com inconformidades nos padrões de qualidade, sendo que o saneamento básico vivencia uma carência profunda no campo de drenagem pluviais, de limpeza urbana, ou mesmo, de manejo de resíduos sólidos.

Dentre as várias consequências do desabastecimento contínuo de água nos bairros da capital baiana, é destacado, primeiro, os impactos no âmbito escolar. Segundo relatos orais de educadores e alunos, os impactos são de diversas ordens, a começar pela escolaridade e rendimento escolar dos alunos. Uma vez que o desabastecimento hídrico chega a durar até cinco dias, o funcionamento normal da escola torna-se impraticável. Portões ficam fechados por dias, aulas são canceladas e, quando o desabastecimento inicia durante o período de aula, os alunos são dispensados. Segundo um professor da região de Cabula, “a falta de água afeta diretamente a escola, uma vez que a escola não tem tanques de reserva d’água. Quando falta [água], consequentemente, tem que suspender a aula. As crianças vêm para a escola e precisam retornar para as suas casas, porque não tem água. Muitas vezes, elas não têm alimento em casa, então a escola seria o lugar onde elas se alimentariam. Então, nesse dia, provavelmente, elas não vão se alimentar. E quando falta água na escola, falta água também na comunidade. Aí são três dias, no mínimo, para a água retornar. De fato, três, quatro, já ficamos cinco dias sem água. E tem um detalhe, quando essa água chega depois de quatro, cinco dias, ela chega amarelada, barrenta. Ela não chega límpida, pura. Ela chega sempre suja”.

O relato nos mostra que a escolaridade é apenas uma das consequências do desabastecimento hídrico. Em lato senso, além do atraso escolar, a falta d’água impacta a alimentação diária dos alunos. Como sabido, em muitos casos, a merenda escolar é a primeira refeição do dia de crianças periféricas que, em função do desabastecimento hídrico, é cessada. 

Frente a esta difícil realidade, e cientes dos impactos nas duas dimensões apresentadas – ritmo escolar e alimentação diária –, a coordenação escolar, em diálogo com o corpo docente, estabelece estratégias para minimizar os danos presentes. No que tange à alimentação, optam pela distribuição de alimentos “secos”, como biscoitos e frutas, logo no início do dia letivo, dispensando os alunos após o café da manhã. Contudo, em situações em que o desabastecimento é contínuo, o corpo docente prefere manter os alunos em aula para minimizar os impactos no ensino. Evidente que tal opção também acarreta grandes consequências e implica em novas estratégias para que a escolha se torne efetiva. Diante desta situação, os alunos contam com a boa vontade dos professores que se dispõem em comprar galões de água potável com os próprios recursos monetários. No entanto, como sabido, a água não se limita a mitigação da sede, mas ela está presente e é necessária em outros ambientes, como nos banheiros, por exemplo. Suspende-se, portanto, a limpeza em geral e os banheiros ficam inutilizáveis.  

Há, também, como dito previamente, os impactos em âmbito privado (em casa). Nesta esfera, é preciso citar duas vias do efeito cascata do desabastecimento hídrico: a dimensão de saúde pública e de gênero. Com relação ao primeiro ponto, segue o relato de uma professora que explica, com clareza, a problemática envolvendo tal dimensão: “Muitas vezes, o aluno vem com o uniforme sujo, ele não vem cheirando muito bem. Isso é decorrente da falta de água não só na escola, mas na comunidade. Além do mais, muitos deles não tem água encanada em casa, porque moram em barracos, porque moram em casas feitas de tábuas. Então, precisam buscar água fora (…) Muitas vezes eles não conseguem filtrar essa água então as crianças ficam doentes, com verminoses, e os adolescentes também. E a escola também sente esses impactos”. Ainda que o presidente Jair Bolsonaro insista em dizer que o brasileiro “pula no esgoto e nada acontece”, o relato acima demonstra outra realidade, por sinal, muito preocupante. O cenário fica ainda mais alarmante quando recordamos que, no ano de 2016, houve 166,8 internações hospitalares por 100 mil habitantes no Brasil devido a doenças relacionadas à falta de saneamento básico (IBGE, 2017). 

Sobre as desigualdades de gênero, a mulher, responsável pelo cuidado familiar, precisa se ausentar do trabalho para tomar conta dos filhos que tiveram as aulas canceladas e, ainda, se deslocar, com baldes em punhos em busca de água para o abastecimento provisório da residência. O desabastecimento hídrico reforça, portanto, as desigualdades de gênero e a divisão sexual das atividades, cabendo ao homem a responsabilidade do trabalho produtivo e à mulher o trabalho reprodutivo e não remunerado relativo aos cuidados domésticos e cuidado de filhos e filhas.


Desigualdades socioambientais e possíveis vias de resolução

Diante do efeito cascata, resultado do desabastecimento hídrico e do saneamento básico precário, nos questionamos quais seriam as vias possíveis para solucionar este problema. Aqui nos deparamos com o crescente argumento em favor da privatização dos serviços, discurso embasado na ineficiência dos serviços do setor público. Esta direção vem sendo trilhada atualmente no Brasil, por meio do “novo marco regulatório do saneamento”.

No entanto, nada garante que o serviço privado terá como cerne de ação a responsabilidade coletiva, a universalização do serviço e o bem estar-social. Ao contrário, a experiência de países que aderiram à privatização de saneamento e água foi catastrófica, com o aumento expressivo das tarifas, que impactou diretamente famílias de baixa renda, e até mesmo conflitos armados, como na Guerra da água de Cochabamba, na Bolívia. As experiências mostraram que esta opção tende a aumentar ainda mais as desigualdades socioambientais e as disparidades sociais.

A resolução desta crise ecológica, motivada por ações que visam a dominação da natureza para saciar um sistema mercadológico e capitalista – e experienciada de modo diferente a depender das dimensões de cor, raça e gênero – não pode ser trilhada de modo a reproduzir a lógica atual. Como aponta Shiva (2003), diante de uma crise ecológica, é preciso também uma solução ecológica, que será executada por uma democracia ecológica. A mudança será efetiva e possível quando estabelecermos um novo paradigma de pensamento que, em grande medida, afasta da ideia de dominação da natureza e vislumbra uma nova agenda política que reinventa a nossa relação com o meio ambiente.

Colaboração: Jéssica Pires Cardoso sobre a autora

Fontes consultadas:

– Artigo científico intitulado “Water governance in the twentieth-first century”, publicado na revista Ambiente e Sociedade em 2007, de autoria de Castro, J;

– Artigo científico intitulado “Fronteiras entre desigualdade e diferença na governança das águas”, publicado na revista Ambiente e Sociedade em 2015, de autoria de Martins, R;

– Livro “La guerre de l’eau. Privatisation, pollution et profit”, de autoria de Shiva, V, publicado pela Editora Paragon em 2003;

– Livro “O caminho das águas em Salvador: bacias hidrográficas, bairros e fontes”, de autoria de Santos, E; Pinho, J.; Moraes, L. R. S; e colaboradores, publicado pela Editora CIAGS/UFBA em 2010;

– Relatório do Ministério do Desenvolvimento Regional. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, intitulado “24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos”, publicado em 2018 (Website);

– Relatório do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, intitulado “Características gerais dos domicílios e dos moradores 2019”, publicado em 2020 (Website);

– Site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Website);

– Matéria no site G1 intitulada “Brasileiro pula em esgoto e não acontece nada, diz Bolsonaro em alusão a infecção pelo coronavírus” publicada no dia 26/03/2020 (Website);

– Matéria publicada na Agência Senado intitulada “Senado aprova novo marco legal do saneamento básico” publicada no dia 24/06/2020 (Website).

(Editoração: Beatriz Spinelli, Fernando Mecca e Caio Oliveira)

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