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Marco Temporal: Esvaziamento da história indígena

#Ciência et al. (Conteúdos repletos de informações científicas)

Povos indígenas reforçam a luta pelo planeta contra o PL490/07

DESTAQUES:
• A Tese do Marco Temporal ameaça não só os povos indígenas, mas também a biodiversidade brasileira;
• O Projeto de Lei 490/07 propõe a mudança da responsabilidade da demarcação das terras indígenas e a liberação de atividades econômicas de alto impacto nos territórios;
• O MPF considera a proposta inconstitucional uma vez que fere os artigos 231 e 232 da Constituição Federal;
• Indígenas resistem às violações em seus direitos desde a colonização, sempre lutando pelos mesmos.

“Se a floresta acabar, não vai ter chuva e sem chuva não tem o que beber, nem o que comer.”  Davi Kopenawa Yanomami

Há exatamente uma semana, na tarde de terça-feira passada (30/05/23) passou por votação na Câmara dos Deputados o projeto de lei 490/2007 (PL 490/07), em regime de urgência. A proposta conhecida como tese do Marco Temporal propõe a mudança da responsabilidade de demarcação das terras indígenas para o Legislativo, ao invés da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), que responde pelo assunto atualmente. 

Ao longo do dia da votação foram observadas mobilizações de Norte a Sul por parte dos povos indígenas, contrários à tese do Marco Temporal (Figura 1). As principais justificativas dos indígenas são a proteção: 

• de seus territórios sagrados;

• dos seus modos de vida e suas culturas;

• e, sobretudo, das normativas que foram conquistadas com muita luta e resistência. 

marco temporal indígena
Figura 1. Pótahn Luiz, indígena do povo Kaingang, acompanhado de sua família nas manifestações contra o PL 490. Imagem: Arquivo pessoal.

Essa votação pelo poder Legislativo foi apontada como inconstitucional pelo Ministério Público Federal, já que os artigos 231 e 232, que garantem os direitos de manter os modos de vida e os territórios dos povos indígenas, são cláusulas pétreas da Constituição da República Federativa do Brasil. Além disso, o Brasil é signatário da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, que determina o consentimento prévio livre e informado como exigência para projetos envolvendo as populações indígenas.

Ainda assim, após uma rápida votação, com ampla vantagem (283 votos a favor e 155 contra), o PL 490/07 foi aprovado em Brasília. A votação foi ainda marcada por discursos que esvaziavam a importância dos povos e territórios indígenas para o país, além de colocar em risco os biomas brasileiros. 

Ao votar a favor do Marco Temporal os deputados ignoram a história, não levando em conta as inúmeras violências e perseguições contra os povos indígenas e seu papel no processo civilizatório do país. 

Como já explicitado em outro texto do portal Ilha do Conhecimento (ver: É ‘muita terra para poucos indígenas’?), os povos indígenas são reconhecidos em todo o mundo por sua atuação a favor do meio ambiente. As consequências da proteção exercida dentro dos territórios ultrapassam, inclusive, os limites geográficos dos mesmos, trazendo benefícios para toda a população mundial, uma vez que contribuem para a diminuição da crise climática e da perda de biodiversidade.

Ainda que essa questão ambiental seja fundamental de ser debatida, a questão social e cultural não pode ser deixada de lado. A vida de milhares de pessoas é posta em xeque com a proposta de lei. 

Após a derrota na Câmara dos Deputados, os indígenas esperam que o Senado Federal rejeite a proposta, que será votada hoje, terça-feira (06/06). Os povos também esperam a retomada da votação do caso da demarcação da Terra Indígena Raposa do Sol, que está agendada amanhã (07/06) pelos juízes do Supremo Tribunal Federal (STF).

Frente às recentes tentativas de deslegitimar os direitos por seus territórios e o constante desrespeito pelas suas vidas, é fundamental enfatizar as opiniões e perspectivas trazidas por representantes indígenas. Dessa maneira, trazemos aqui relatos cedidos por entrevistados do povo Kaingang do Sul do Brasil sobre a possível aprovação do Marco Temporal e como isso afeta seu presente e futuro:

“Estava conversando sobre o Marco Temporal com meu pai [de 64 anos], ele disse que não entende como podem fazer isso, como pode ter Marco Temporal nos territórios Indígenas. Como temos que provar que nós estávamos nas terras? A história conta sobre nós desde a chegada dos portugueses no Brasil! Fico indignada. 

Nossos territórios foram tomados, usurpados, nossas mulheres foram estupradas, ‘pegas no laço’ como escutamos os brancos falando quando querem de alguma forma dizer ‘também sou índio, meu avô ou bisavô casou com uma índia, então também sou’.  Nós fomos usadas, fomos mortas. Nosso corpo é território sagrado, mas nunca foi respeitado! 

Vivemos dia após dia lutando pelo bem maior que é nossa existência. Existir, poder estar. Não precisamos e nem deveríamos estar nesta condição de invasor, nós somos originários da terra. Filhos e filhas da terra. Nossa luta é pela garantia da vida, dos rios, das matas, dos animais, de tudo que existe no planeta. 

Somos os protetores das nossas riquezas, lutando pela preservação da biodiversidade do planeta. Somos resistência e vamos estar aqui lutando até não sobrar um indígena, vamos resistir e vamos deixar a geração nova, os nossos filhos ficarão e lutarão pela garantia dos nossos direitos. 

Vamos ter que preparar nossos filhos para que futuramente eles estejam preparados pra lutar pelos nossos direitos, assim como nossos ancestrais lutaram e nós estamos lutando. Agora preparo eles pra saírem na linha de frente se precisar. A luta é diária!

Precisamos ser fortes, e mais fortes ainda por eles, pelos nossos filhos, por nós, por todos. Porque nem todos os indígenas sabem o que está acontecendo, cabe às lideranças e caciques estarem à frente pra fazer manifestação nos territórios. Por isso, o uso das redes sociais é como nós lutamos também, para informar os outros parentes. Como mãe e mulher lutamos todos os dias. 

Nunca foi fácil, nunca será fácil, mas temos a proteção e sabedoria dos nossos ancestrais. Guardamos nos nossos corpos a geração que está aqui e as que virão. Sou protetora dos meus.” (Jociele Luiz)

 

É importante destacar que o senhor Alevino Luiz, pai de Jociele, é o patriarca da família Luiz, uma das famílias mais tradicionais do povo Kaingang que residem na Terra Indígena de Mangueirinha, no estado do Paraná. Sua indignação e descontentamento refletem o pensamento de muitos anciãos e membros das terras indígenas, principalmente pela incerteza que projetos de lei como o PL 490/2007 acarretam para as comunidades. 

Os filhos de Jociele (Tayla, 12 anos, e Pótahn, 4 anos) acompanham a mãe ativamente nas lutas e manifestações a favor dos direitos indígenas. Essas lutas, conforme mencionado, são fundamentais para reconhecer as lutas dos antepassados e fortalecer a luta pelo futuro dos povos indígenas, de seus territórios e da própria biodiversidade que conservam (Figura 2a, b).

marco temporal indígena
Figura 2a, b. A presença da infância e juventude indígena do povo Kaingang na luta pelos seus direitos em Brasília. Imagem: Arquivo pessoal.

Levando em consideração as já comprovadas contribuições e o papel fundamental dos povos indígenas na manutenção do planeta, sobretudo por seus territórios (ex: IPBES, 2019; IPCC, 2021; IUCN, 2021), a discussão de projetos de lei e teses como o PL 490/07 e o Marco Temporal é inconstitucional e demonstra uma ampla ignorância histórica. 

As iniciativas globais revelam a urgência no combate às mudanças climáticas, à perda da biodiversidade e à própria dignidade humana, mas a aprovação de projetos como esse no Brasil podem revelar o atraso do país em temáticas globais, isolando-o dos debates atuais. 

A tese do Marco Temporal, além de esvaziar a história dos povos indígenas e colocar sua própria sobrevivência em risco, também valida a perpetuação de atividades econômicas não sustentáveis e de alto impacto ambiental, tal como o garimpo, a mineração e a exploração agropecuária em terras indígenas. 

Colocar o segmento agropecuário e crescimento econômico em oposição aos povos indígenas e a conservação da natureza é ultrapassado. Novas iniciativas econômicas já reconhecem o pagamento por serviços ambientais, a economia ecológica e a bioeconomia, com a devida repartição de benefícios, como modelos frutíferos para um país megabiodiverso como o Brasil.

 

Colaboradoras

Ariadne Dall’acqua Ayres sobre a autora

Ariadne é bacharela e licenciada em Biologia pela USP. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Biologia Comparada, também é doutoranda pelo mesmo programa da USP. Ariadne é dedicada ao estudo das relações entre povos indígenas e a biodiversidade, com destaques ao povo Kaingang do Paraná e à Araucaria angustifólia. Acredita que a Ciência é feita pelo diálogo entre diferentes epistemologias e que os conhecimentos indígenas revelam um saber muito rico.

Jociele Luiz sobre a autora

Jociele é da etnia Kaingang, co-fundadora da Associação de Mulheres Indígenas Kaingang e Guarani Ga Jãre (raízes da terra) da Terra Indigena Mangueirinha (PR) e mulher raiz da Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA). Jociele está à frente da organização das mulheres indígenas do Estado do Paraná para a III Marcha das Mulheres Indígenas, que acontece em Brasília. Também é representante dos acadêmicos Indígenas da UNICENTRO pela CUIA Estadual. É mãe, filha da ancestralidade e luta pelos direitos indígenas. Como acadêmica luta pelo direito de estar na universidade e pela ocupação deste espaço de formação, sabendo que na universidade também se aprende a lutar e abrir os olhos para o mundo e suas dificuldades.

 

Referências:

M.

(Editoração: Fernando F. Mecca e Nathália A Khaled)

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