A água residual da produção de cerveja é rica em nutrientes e microrganismos, e pode virar ração animal, como por exemplo, na produção de camarão.
Não é surpresa que a cerveja faz parte da cultura de muitas populações. Historicamente, a bebida já serviu como pagamento para os trabalhadores que construíram as pirâmides do Egito, como alimento e até mesmo salvou pessoas da peste negra na Europa. Até mesmo Louis Pasteur só descobriu o processo de pasteurização graças aos seus estudos sobre cerveja. Em alguns países a cultura cervejeira está tão enraizada que se tornou patrimônio imaterial da humanidade, pela Unesco, como é o caso da Bélgica. E foi um time de cientistas belgas, da universidades de Antuérpia e Gent e da empresa holandesa SEMiLLA IPStar, que decidiram analisar o potencial nutritivo da água residual da produção de cerveja e constataram que essa água é uma ótima fonte de proteínas para ração animal, por promover o crescimento de microrganismos com um alto teor proteico. Assim, essa fonte de proteínas pode substituir a farinha de peixe na ração de camarões, tornando a produção mais sustentável.
Estima-se que cada litro de cerveja demanda cerca de 7 litros de água. Em cervejarias menores, esse consumo pode ser ainda maior. Boa parte dessa água, no entanto, pode ser reaproveitada. No caso da água residual da produção, ela pode conter ainda muitos nutrientes importantes. Em 2016, pesquisadores da Universidade do Colorado, nos EUA, identificaram fungos que poderiam ser usados na fabricação de baterias, como eletrodos biológicos.
No caso dos pesquisadores belgas, a água residual de cerveja foi escolhida por ser mais pura que a descartada em outros processos industriais. Além disso, foi escolhido o estilo trapista, tradicionalíssimo estilo belga, produzido originalmente de forma artesanal pela ordem de monges de mesmo nome, nos monastérios. No caso deste estudo, foi escolhida a cervejaria De Koningshoeven.
Primeiro, bactérias púrpuras, um conjunto de espécies de bactérias roxas fototróficas, ou seja, que são capazes de produzir o próprio alimento via fotossíntese, foram introduzidas à água residual. Nesse conjunto de bactérias púrpuras estavam presentes as espécies Rhodopseudomonas palustris, Rhodobacter capsulatus, entre outras. Essas bactérias já são empregadas como fonte proteica na ração de camarões, mas podem ter até 70% mais proteínas quando criadas na água proveniente da cerveja, isso porque a água possui muitos nutrientes essenciais para o crescimento dessas bactérias. Estas, por sua vez, contêm também vitaminas e antioxidantes e possuem propriedades probióticas que inibem o crescimento de outras bactérias que causam doenças. Os resultados dos testes com a água, portanto, foram muito promissores. Utilizando um reator de 100 litros, por exemplo, foi alcançada uma produtividade de 120 toneladas de proteína por hectare ao ano. O que é uma produção cerca de 100 vezes mais eficiente que a soja, que é a principal fonte de proteínas para ração animal empregada hoje no mundo e que chega a apenas 1,5 tonelada de proteína por hectare ao ano.
Dessa forma, os cientistas estão confiantes de que as bactérias púrpuras cultivadas na água residual da cerveja podem substituir a farinha de peixe. Hoje, a farinha de peixe é o principal componente protéico das rações utilizadas na aquicultura e é produzida a partir do processamento industrial de subprodutos da pesca, como vísceras, cabeças e espinhas de peixes. Segundo o engenheiro de biociências Abbas Alloul, um dos autores do estudo, essa produção é bastante insustentável, pois resulta em sobrepesca, quando uma espécie é pescada além da sua capacidade natural de reprodução, e o consequente declínio nas populações de peixes nos oceanos. Além disso, a farinha de peixe tem um valor de mercado mais alto que outras fontes proteicas, como a farinha de soja. Outro resultado importante, é que os camarões criados à base das bactérias púrpuras como fonte de proteína, cresceram mais rápido e consumindo menos recursos.
Apesar de o estudo ter sido conduzido na cervejaria holandesa que produz uma das cervejas trapistas mais famosas do mundo, a La Trappe, a água residual não precisa ser necessariamente de uma cerveja trapista. Os cientistas defendem que a utilização da água residual de todas as cervejas produzidas no mundo hoje, podem ajudar a transformar os processos da indústria alimentícia, inclusive contribuindo para a produção de ração para outros animais, tornando toda a cadeia produtiva mais sustentável.
News: Jéssica Soares
Fontes e mais informações sobre o tema:
Matéria no site Uol, intitulada “Camarão com cerveja pode salvar o mundo. Água da bebida vira ração animal”, publicada em 26/03/2021.
https://www.uol.com.br/nossa/noticias/redacao/2021/03/26/camarao-com-cerveja-pode-salvar-o-mundo-agua-da-bebida-vira-racao-animal.htm
Matéria no site The Brussels Times, intitulada “Waste water from brewing Trappist ale produces new source of animal feed”, publicada em 05/02/2021.
https://www.brusselstimes.com/news/belgium-all-news/153003/waste-water-trappist-new-source-of-animal-feed-university-antwerp-ghent-la-trappe/
Estudo científico intitulado “Purple bacteria as added-value protein ingredient in shrimp feed: Penaeus vannamei growth performance, and tolerance against Vibrio and ammonia stress” publicado na revista Aquaculture em 2021, de autoria de Alloul A., Wille M., Lucentia P., e colaboradores.
https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0044848620317063
Matéria no site G1, intitulada “Mestre cervejeiro destaca importância cultural e social da cerveja; veja lista de curiosidades”, publicada em 08/08/2017.
https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/especial-da-cerveja-artesanal/noticia/mestre-cervejeiro-destaca-importancia-cultural-e-social-da-cerveja-veja-lista-de-curiosidades.ghtml#
(Editoração: André Pessoni)