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The Last of Us: Poderia um fungo mortal causar uma pandemia?

#Ciência et al. (Conteúdos repletos de informações científicas)

O apocalipse previsto em The Last of Us não é uma realidade, mas a ameaça crescente de patógenos fúngicos sim.

DESTAQUES:
• Na série, a infecção é inspirada em um fungo real, o Ophiocordyceps unilateralis, que infecta insetos e alteram seus comportamentos;
• Os fungos podem sofrer mutações e infectar humanos, sendo resistentes à temperaturas, antifúngicos e ao sistema imunológico. Mudanças climáticas facilitam esse processo;
• Apesar de poderem ser mortais, os fungos não possuem a capacidade de controlar o cérebro humano.

De uma perspectiva científica, a princípio, a série The Last of Us, baseada em um jogo de videogame, nos conta uma mentira que, convenhamos, é muito bem contada. 

No programa, a mudança climática no mundo permitiu o surgimento de um novo patógeno, que infecta humanos, controlando seus cérebros e transformando os mesmos em zumbis. E, de forma incomum, como visto no primeiro episódio (SPOILER! Spoiler leve, fique tranquilo), um jornalista pergunta a um cientista em um programa com plateia “Não são bactérias? Não é um vírus?”, o cientista responde “Fungo” e a plateia cai na risada. 

Quando boa parte dos cientistas assistem a cena mencionada acima, também devem primeiramente rir e pensar: “Um fungo acabando com a humanidade? Isso não parece uma possibilidade nem mesmo remota”. Isso porque as pandemias que conhecemos são causadas por vírus, como no caso da varíola (leia mais aqui) e da mais recente COVID-19 (leia mais aqui), e bactérias, como no caso da cólera e peste bubônica, e nenhum fungo nunca causou nenhuma pandemia conhecida. Porém, existem evidências reais de que a mudança climática pode verdadeiramente tornar os fungos a classe mais perigosa de patógenos para os humanos.

Até então, podemos pensar que tudo bem, que a série é uma ficção e não precisa ser baseada em fatos reais, mas é aí que nos enganamos. 

the last of us fungo
Figura 1. Fungo Ophiocordyceps unilateralis infectando uma formiga e um dos zumbis infectados na série The Last of Us. Fontes: TecMundo e TheDigitalFix.

O que é verdade na série?

O escritor do jogo, Neil Druckmann, se inspirou no fungo Ophiocordyceps unilateralis para fazer a narrativa da história. Esse fungo pertence ao gênero Ophiocordyceps, que são fungos entomoparasitas, ou seja, que parasitam insetos.

Trabalhos recentes mostram que essa infecção atinge grandes populações de formigas em florestas tropicais, ou seja, em locais úmidos e de alta temperatura. Essa infecção leva a mudanças no comportamento desses insetos, o que traz a ideia de zumbis que conhecemos, e, após a morte da formiga, ocorre o desenvolvimento do corpo de frutificação do fungo no entorno do corpo do inseto (bem como nos corpos dos seres humanos na série), que tem como finalidade permitir a dispersão dos esporos, o que permite novas infecções e mais organismos.

E a mudança climática e os fungos?

Além da inspiração em um fungo real, a ideia de que as mudanças climáticas podem facilitar a infecção por fungos em humanos é verdadeira.

A maioria dos fungos não consegue se reproduzir na temperatura média do corpo humano (37°C). Porém, existem algumas espécies que, após processos evolutivos, são capazes de suportar temperaturas mais elevadas, favorecendo sua sobrevivência em um planeta que vem sofrendo um aumento de temperatura a cada ano. Portanto, é possível o surgimento de novas espécies capazes de crescer a temperaturas mais próximas dos 37°C do corpo humano.  Em paralelo, estudos mostram que a temperatura média do corpo vem caindo desde o século 19, em movimento contrário ao aumento da temperatura global.

Um exemplo de fungo que infecta humanos é o fungo Cryptococcus deneoformans, que causa a doença chamada Criptococose e é resistente à ação de medicamentos antifúngicos quando estudados na mesma temperatura que a do corpo humano. Esse mesmo fungo, quando colocado a temperaturas mais altas, tende a não resistir, mas algumas de suas cepas sofrem mutações em seu DNA e sobrevivem ao calor adicional, o que pode indicar uma possível resistência do mesmo no futuro.

Então, sim, os fungos sofrem mutações com o calor e pelo menos uma espécie, a Candida auris, ganhou a capacidade de infectar pessoas graças às mudanças climáticas. Sendo assim, os fungos podem, no futuro, serem causadores de uma pandemia.

the last of us fungo
Figura 2. Registro da tela de notícias de 20 de janeiro de 2023, dia em que a Fundação Oswaldo Cruz e a Universidade Federal de Pernambuco descreveram o maior surto causado por Candida auris já registrado no Brasil. Fonte: CNN Brasil.

Não quero virar um zumbi, e agora?

Agora vem a boa notícia!

Apesar de existirem fungos que podem alterar o comportamento de formigas, esses fungos não possuem a capacidade de ultrapassar o sistema imunológico humano, isso porque as espécies são bem adaptadas para o tipo de hospedeiro que elas infectam.

Embora alguns fungos produzam substâncias químicas que alteram o comportamento humano, como o LSD e a psilocibina, esse estado é momentâneo. E, mesmo que os fungos se tornassem mais resistentes à temperatura do corpo humano, aos antifúngicos e aos ataques do sistema imunológico, eles muito provavelmente não conseguiriam controlar nossos cérebros. Ufa!

Também vale lembrar que a ciência, quando valorizada, evolui sempre graças à capacidade dos seres humanos de estudarem, se aprimorarem e desenvolverem novos tratamentos. 

Isso até todos nós virarmos zumbis!

 

Colaboração:

Nathália Amato Khaled sobre a autora

Nathália é perita criminal, professora, doutora em genômica e bioinformática, mestre em imunologia e graduada em Biomedicina. Fascinada pela área forense desde os 11 anos de idade, atua na mesma e vê na educação, aliada à ciência, as possibilidades de mudanças significativas para a sociedade. Nathália também é responsável pelo desenvolvimento do website e gestão de conteúdo no Ilha do Conhecimento.

 

Referências:

Artigo científico intitulado “Behavioral mechanisms and morphological symptoms of zombie ants dying from fungal infection”, publicado em 2011 na revista BMC Ecology, por Hughes D.P. e colaboradores.

Artigo científico intitulado “Candida auris: An Overview of the Emerging Drug-Resistant Fungal Infection”, publicado em 2022 na revista Infection & Chemotherapy, por Sanyaolu A.

Artigo científico intitulado “Climate change and the emergence of fungal pathogens”, publicado em 2021 na revista PLOS Pathogens, por Nnadi N.E. e Carter D.A.

Artigo científico intitulado “Decreasing human body temperature in the United States since the Industrial Revolution”, publicado em 2020 na revista eLife, por Protsiv M. e colaboradores.

Artigo científico intitulado “Disease Dynamics in a Specialized Parasite of Ant Societies”, publicado em 2012 na revista PLoS ONE, por Andersen S.B. e colaboradores.

Artigo científico intitulado “Genome-wide analysis of heat stress-stimulated transposon mobility in the human fungal pathogen Cryptococcus deneoformans”, publicado em 2023 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, por Gusa A. e colaboradores.

Artigo científico intitulado “Mammalian endothermy optimally restricts fungi and metabolic costs”, publicado em 2010 na revista mBio, por Bergman A. e Casadevall A.

Artigo científico intitulado “Species-specific ant brain manipulation by a specialized fungal parasite”, publicado em 2014 na revista BMC Evolutionary Biology, por De Bekker C. e colaboradores.

Artigo científico intitulado “Vaccines for human fungal diseases: close but still a long way to go”, publicado em 2021 na revista npj Vaccines, por Oliveira L.V.N e colaboradores.

Artigo científico intitulado “Transposon mobilization in the human fungal pathogen Cryptococcus is mutagenic during infection and promotes drug resistance in vitro”, publicado em 2020 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, por A. Gusa e colaboradores.

Artigo científico intitulado “Thermotolerance and Adaptation to Climate Change”, publicado em 2022 no livro The Impact of Climate Change on Fungal Diseases, da série Fungal Biology, editora Springer, por Chávez M.A.

Matéria no site Prevention, intitulada “Is the Zombie Fungus From ‘The Last of Us’ Real? Experts Explain”, publicada em 30/01/23.

(Editoração: Bruna L. Ferreira)

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