#Farol de Notícias (Atualidades científicas que foram destaque na semana)
O trabalho foi publicado na revista Frontiers for Young Minds, um periódico que é revisado por crianças
Uma equipe do Instituto Butantan, em São Paulo, que investiga venenos de peixes peçonhentos, publicou um trabalho no qual descrevem uma molécula, descoberta no peixe Niquim, com potencial de virar um tratamento contra doenças inflamatórias. A molécula pode tratar doenças como asma e esclerose múltipla (uma doença que afeta o sistema nervoso central), de acordo com os pesquisadores. Mais interessante ainda, foi que os pesquisadores publicaram o artigo na Frontiers for Young Minds, uma revista científica revisada e editada apenas por crianças. Segundo os cientistas envolvidos no projeto, interagir com as crianças ajudou a simplificar conceitos e reforçou a importância do trabalho que eles fazem na bancada do laboratório.
Desde sua fundação, o Instituto Butantan é referência nacional e internacional no estudo de venenos e na produção de soros para tratar acidentes com cobras e aranhas. Mas o centro de pesquisas também possui um grupo que estuda especificamente os venenos de peixes, como, por exemplo, alguns bagres, arraias e o niquim — este último, aliás, é um dos focos de pesquisa no Butantan. O niquim está entre os principais causadores de acidentes entre os peixes brasileiros.
Essa espécie, cujo nome científico é Thalassophryne nattereri, costuma viver em águas levemente salgadas, na transição entre rios e mares. É mais encontrado na região Nordeste do Brasil. “Quando acidentes com peixes acontecem, a pessoa sente muita dor, inchaço e vermelhidão. A pele acometida também pode sofrer um processo de necrose”, explica a farmacêutica Carla Lima, do Laboratório de Toxinologia Aplicada (Leta) do Butantan. No caso do niquim, esta espécie gosta de ficar enterrada na areia — e um transeunte desavisado pode acabar pisando nos espinhos do peixe, localizados nas laterais e na parte superior do corpo do animal, por onde o veneno passa.
Ao fazer análises do veneno que é inoculado pelo niquim, os especialistas do Butantan identificaram a molécula TnP (sigla em inglês para peptídeo do Thalassophryne nattereri). Eles sintetizaram quimicamente a molécula e começaram a fazer os primeiros testes em laboratório. Em roedores, a substância foi capaz de tratar quadros inflamatórios parecidos com asma e esclerose múltipla. Nesse ponto, entra um segundo peixe na história: o peixe zebra (Danio rerio), nome que faz alusão ao fato de o bicho ter várias listras pelo corpo. Esta espécie foi utilizada como modelo experimental nos testes com a molécula TnP.
Os pesquisadores usam o peixe zebra como modelo pois, em termos genéticos, eles têm o DNA aproximadamente 70% igual ao nosso. Isso permite entender no peixe zebra muitos fenômenos que nos afetam, como as respostas imunológicas e inflamatórias. Além disso, esse peixe tem um desenvolvimento muito rápido — em apenas 72 horas após a fecundação, a maioria dos órgãos dele já está funcionando. Para ter ideia, um peixe zebra cresce em um dia o equivalente ao que um embrião humano demora um mês. Ainda, os embriões desse peixe são quase transparentes, o que facilita a visualização das estruturas internas dele. Em termos práticos, todas essas vantagens fazem do peixe zebra um modelo experimental muito usado em pesquisas atualmente.
Portanto, nesta pesquisa o TnP sintetizado em laboratório foi testado no zebrafish — e, nesses experimentos iniciais, mostrou-se seguro ao não causar efeitos colaterais significativos. As investigações com a molécula devem seguir adiante no laboratório. Se os resultados continuarem positivos, é possível que daqui a alguns anos ela seja testada em seres humanos com o objetivo de virar um potencial remédio contra as doenças inflamatórias.
Quanto à publicação, geralmente qualquer pesquisa científica passa por algumas etapas de avaliação e edição antes de ser publicada num periódico especializado. Esse trabalho é realizado por cientistas, especialistas daquela área, independentes, isto é, que não têm relação com o estudo sendo avaliado. No caso da revista Frontiers for Young Minds, porém, o artigo é revisado por crianças de escolas estadunidenses que, com auxílio de professores, apontam as principais dúvidas e pontos que precisam ser reformulados. Os cientistas-autores da pesquisa e os revisores mirins têm reuniões e conversas, justamente para que o texto final fique o mais claro e detalhado possível — afinal, a ideia é que todo mundo, especialista ou não, possa entender aquilo que está escrito.
O grupo do Butantan, por exemplo, relata que recebeu sugestões das crianças, como incluir algumas ilustrações sobre a anatomia do niquim e as etapas de desenvolvimento do zebrafish, detalhar melhor algumas descrições e acrescentar um glossário de palavras mais complicadas ao final do artigo. “Talvez o nosso grande desafio como cientistas é conseguir demonstrar a grandiosidade de nosso trabalho de modo que todas as pessoas possam entender”, aponta a farmacêutica Carla Lima.
A Ilha do Conhecimento também já trouxe artigos traduzidos, originalmente publicados na revista Frontiers for Young Minds, como “Um micróbio que transforma camundongos em zumbis: Toxoplasma gondii” e “Exposição à luz solar afeta a temperatura corporal de tubarões”.
Você pode conferí-los nos links abaixo:
http://ilhadoconhecimento.com.br/microbio_camundongos_zumbi_toxoplasma/
http://ilhadoconhecimento.com.br/luz_solar_temperatura_tubaroes/
http://ilhadoconhecimento.com.br/frontiers-kids/
Colaboração:
Jéssica de Moura Soares sobre a autora
Jéssica de Moura Soares é bacharel em Biotecnologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Mestre e agora doutoranda em Bioquímica pela Universidade de São Paulo (USP). Se interessa por iniciativas onde a ciência ajuda a transformar o mundo em um lugar mais sustentável e igualitário. Entusiasta da divulgação científica, acredita que a ciência tem que ser de fácil acesso a todos.
Fontes e mais informações sobre o tema:
Matéria no site G1, intitulada “A pesquisa do Butantan sobre veneno de peixe que foi revisada por crianças” , publicada em 01/08/2023. https://g1.globo.com/ciencia/noticia/2023/08/01/a-pesquisa-do-butantan-sobre-veneno-de-peixe-que-foi-revisada-por-criancas.ghtml