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Como se relacionam os índices de fracasso escolar, racismo e encarceramento?

#Ao seu alcance (Artigos científicos em linguagem simplificada)

Da escola para a prisão: uma revisão sobre as relações entre encarceramento, fracasso escolar e racismo

Destaques
● Há semelhanças no perfil social, racial e educacional da população encarcerada no Brasil e nos Estados Unidos da América;
● O objetivo do estudo foi analisar se as temáticas do encarceramento, racismo, e fracasso escolar já foram abordadas de forma inter-relacionada em algum estudo da área da Educação;
● Os resultados mostraram que, no Brasil, inexistem trabalhos que correlacionam simultaneamente encarceramento, racismo e fracasso escolar;
● No entanto, nas bases de dados internacionais, há grande quantidade de pesquisas que correlacionam estes dados.

RESUMO

Os dados sobre o sistema prisional nos Estados Unidos e no Brasil possuem semelhanças no perfil social, racial e educacional da população encarcerada. A partir disso, o objetivo da pesquisa de Débora Cristina Piotto, Rafael Sanchez Luperini e Sérgio César da Fonseca, publicada em 2023, foi analisar se as temáticas do encarceramento, racismo e fracasso escolar são abordadas de forma inter-relacionada na área da Educação. Os resultados mostraram que, no Brasil, inexistem trabalhos que correlacionem simultaneamente encarceramento, racismo e fracasso escolar. Já nas bases de dados internacionais há grande quantidade de pesquisas que fazem essa correlação.

 

INTRODUÇÃO

Os Estados Unidos da América (EUA) ocupam a primeira posição na lista de países com a maior população encarcerada em números absolutos. Nessa listagem, o Brasil está em terceiro lugar, vindo atrás apenas da China e dos EUA (WORLD PRISON BRIEF, 2022). 

Brasil e Estados Unidos também compartilham outro fator: o perfil da população encarcerada. Nos EUA, a maior parte das pessoas em privação de liberdade é negra, latina e pobre. Em nosso país, o perfil social e racial dos encarcerados é semelhante, já que por aqui a maioria dos encarcerados é jovem, pobre e de cor preta ou parda.

Isso ocorre porque os dois países tiveram suas sociedades formadas e profundamente marcadas pela escravidão. Além da exploração intensa do trabalho compulsório dos escravizados, a escravidão também criou impedimentos para que ex-escravizados e seus descendentes pudessem melhorar de vida, via o acesso à educação formal (principalmente superior), e com fortes limitações à participação política. 

Partindo desse ponto, o objetivo da pesquisa foi analisar se as temáticas de encarceramento, racismo e fracasso escolar são abordadas de forma inter-relacionada em trabalhos na área da Educação. Para isso, foram feitas buscas por artigos que correlacionassem encarceramento, racismo e fracasso escolar nas bases de dados Scopus, SciELO, Web of Science e a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), utilizando-se operadores booleanos e as palavras-chave: fracasso escolar, faculdade, prisão, escola, racismo, cor, pretos, pardos, negros, raça, étnico-raciais. Todas as palavras-chave foram pesquisadas em português e em inglês já que alguns dos bancos de dados utilizados são internacionais. 

RELAÇÕES ENTRE ENCARCERAMENTO, FRACASSO ESCOLAR E RACISMO

Ao investigar se existem artigos, teses, dissertações ou livros que relacionem o encarceramento e o fracasso escolar, chegamos aos resultados que serão demonstrados a seguir. 

Os resultados obtidos a partir da combinação das palavras-chave com os operadores booleanos “FRACASSO ESCOLAR,      or PRISÃO,      or RACISMO      em cada uma das bases de dados consultadas foram organizados nos quadros 1 e 2, a seguir:. 

Quadro 1 – NÚMERO DE ARTIGOS LOCALIZADOS EM CADA BASE DE DADOS, UTILIZANDO OS DESCRITORES FRACASSO ESCOLAR, or PRISÃO, or RACISMO

racismo encarceiramento
Fonte: elaborado pelos autores.

Com base no quadro de 1, pode-se notar que há muitos artigos que tratam de, ao menos, um dos temas relacionados às palavras-chave buscadas. Contudo, isso não significa que os trabalhos localizados abordam os três temas ao mesmo tempo, correlacionando-os. Ao realizar uma análise mais detalhada dos artigos da lista encontrada, percebemos que a maioria deles trata somente de um ou no máximo dois desses temas, sendo que alguns ainda os abordam de forma indireta.

Quadro 2 – NÚMERO DE ARTIGOS LOCALIZADOS EM CADA BASE DE DADOS, UTILIZANDO OS DESCRITORES FRACASSO ESCOLAR and PRISÃO and RACISMO

Fonte: elaborado pelos autores.

Já no quadro 2, é possível notar que a plataforma Scopus foi a única a apresentar muitos artigos, mais de 40.000, que utilizam as três palavras-chave pesquisadas simultaneamente. Porém, ao checar os artigos trazidos pela lista do site, novamente encontram-se muitos não relacionados diretamente aos temas buscados. Portanto, a partir dos resultados obtidos, observa-se que nas plataformas utilizadas praticamente inexistem trabalhos que investiguem direta e simultaneamente as relações entre fracasso escolar, encarceramento e racismo. 

Trocando o termo fracasso escolar por faculdade, foram obtidos os resultados dos quadros 3 e 4:

Quadro 3 – NÚMERO DE ARTIGOS LOCALIZADOS EM CADA BASE DE DADOS UTILIZANDO OS DESCRITORES FACULDADE or PRISÃO or RACISMO

Fonte: elaborado pelos autores.

Quadro 4 – NÚMERO DE ARTIGOS LOCALIZADOS EM CADA BASE DE DADOS, UTILIZANDO OS DESCRITORES FACULDADE and PRISÃO and RACISMO

Fonte: elaborado pelos autores.

Pode-se perceber que apesar de os números serem diferentes, o mesmo padrão observado nos quadros 1 e 2 repetese com os dados dos quadros 3 e 4, com o número de trabalhos diminuindo drasticamente quando os termos são procurados em conjunto. Novamente, os trabalhos apresentados pela plataforma Scopus demonstrados no quadro 4 assemelham-se com os artigos mencionados no quadro 2, no qual após averiguar mais a fundo os artigos encontrados, constatamos que poucos realmente possuíam alguma relação direta com a temática proposta. 

Dessa forma, foram realizadas outras buscas utilizando menos e diferentes palavras-chave. Os quadros 5 e 6 apresentam duas dessas buscas, em que foram utilizadas apenas duas palavras-chaves com os operadores booleanos “or” e “and” (“escola ou prisão” e “escola e prisão”).

Quadro 5 – NÚMERO DE ARTIGOS LOCALIZADOS EM CADA BASE DE DADOS, UTILIZANDO OS DESCRITORES ESCOLA or PRISÃO

Fonte: elaborado pelos autores.

Quadro 6 – NÚMERO DE ARTIGOS LOCALIZADOS EM CADA BASE DE DADOS, UTILIZANDO OS DESCRITORES ESCOLA and PRISÃO

Fonte: elaborado pelos autores.

Quando utilizadas as palavras-chave “escola ou prisão”, pode-se perceber que há muitos artigos que tratam dessas temáticas de forma separada. Quando se busca por trabalhos que tenham ambas as palavras-chave, escola e prisão, o número de artigos encontrados diminui consideravelmente. Se, por um lado, há muitos estudos que investigam questões relacionadas a escolas e a prisões, por outro, há consideravelmente menos estudos que abordam as possíveis relações entre as duas instituições.

Dentre os poucos trabalhos encontrados que tratavam ao mesmo tempo dos temas escola e prisão, encontramos alguns artigos que traziam um termo até então desconhecido por nós. Trata-se da expressão em inglês “school-to-prison pipeline”, que traduzida de forma literal, significa “encanamento da escola para a prisão”, o que remete, de modo figurado, a uma espécie de encanamento ligando escolas a presídios. Após a descoberta desse novo termo, fizemos mais uma busca, desta vez, contendo somente ele, como é mostrado no quadro 7.

Quadro 7 – NÚMERO DE ARTIGOS LOCALIZADOS EM CADA BASE DE DADOS, UTILIZANDO O DESCRITOR “SCHOOL-TO-PRISON PIPELINE”

Fonte: elaborado pelos autores.

Com base no quadro apresentado, observamos que não foram encontrados artigos, teses ou dissertações nas bases de dados nacionais SciElo. No BDTD localizou-se apenas um artigo não diretamente relacionado com o termo. Isso provavelmente ocorreu pelo fato de o termo buscado ser de língua inglesa. Nas plataformas internacionais Scopus e Web of Science, o levantamento resultou em muitos artigos, que de fato traziam a expressão “school-to-prison pipeline”.

O artigo mais antigo a utilizar esse termo encontrado na plataforma Web of Science, plataforma em que foram localizados mais trabalhos que de fato usaram essa expressão, é do ano de 2007. Dado que pode indicar que a expressão é relativamente nova na literatura científica.

A partir destes resultados, foram identificados estudos que tratavam de forma central as relações entre encarceramento, fracasso escolar e racismo. Com este olhar mais apurado, verticalizamos a análise, e os principais resultados da leitura destes estudos encontram-se sintetizados no próximo item.

DA ESCOLA PARA A PRISÃO

A expressão “school-to-prison pipeline” tem origem nos Estados Unidos da América e está relacionada a políticas de tolerância zero vigentes nesse país nas últimas décadas. Segundo Heitzeg (autora do trabalho Zero Tolerance Policies and the School to Prison Pipeline publicado em 2009), a expressão faz referência a um crescente padrão de retirada dos alunos de instituições educacionais, transferindo-os direta ou indiretamente para sistemas de justiça juvenis ou adultos.

Dessa forma, situações envolvendo má conduta comportamental e problemas disciplinares nas escolas públicas dos EUA podem ser consideradas crimes passíveis de condenação no sistema prisional. Trata-se, então, da presença do sistema penal e judiciário dentro das escolas. Assim, o surgimento da expressão “school-to-prison pipeline” reflete uma crescente preocupação dos pesquisadores da área educacional a respeito dos efeitos dessas políticas de tolerância zero.

Tais políticas têm contribuído para o aumento das taxas de suspensão e expulsão nas escolas públicas e a elevação dos números de desistência e fracasso escolar. Além disso, elas atingem de forma desproporcional minorias políticas, como negros e latinos. Desde os anos 1970, a população prisional dos EUA aumentou dez vezes, sendo a maior do mundo.

Heitzeg ainda aponta outra questão: a motivação pelo lucro. Conforme a autora, o chamado “complexo industrial prisional”, presente nos EUA, é uma fonte de lucros corporativistas, que “empregam” mão de obra barata e semiescrava em regiões deprimidas economicamente. Esse complexo inclui prisões estatais e cerca de 300 prisões privadas. Para Heitzeg, essa problemática demanda reformas de políticas educacionais, bem como o enfrentamento de interesses políticos e corporativistas que lucram com o encarceramento em massa de jovens negros e latinos.

 A expressão “school-to-prison pipeline” foi criada para denominar uma realidade bastante presente no contexto norte-americano: a existência de políticas públicas que contribuem de forma clara para o encaminhamento de jovens negros e latinos, pobres, das escolas, para o sistema prisional. Os trabalhos analisados trazem várias críticas a essas políticas, discutindo diversos fatores a elas relacionados, dentre eles, o racismo que as estrutura. Além disso, os artigos também discutem medidas que vêm sendo implementadas para enfrentar as políticas de tolerância zero no meio educacional.

Em conclusão, o presente trabalho identificou uma grande falta de pesquisas brasileiras relacionando racismo, escola e encarceramento, ao mesmo tempo em que nota a grande importância dessa relação, como ilustra o conceito americano de “school-to-prison pipeline”.

 

Colaboração: 

Débora Cristina Piotto sobre a autora

Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia/USP, Brasil (2007). Professora Associada da Universidade de São Paulo, Brasil.

 

Rafael Sanchez Luperini sobre o autor

Mestrado em Bioquímica pela FMRP/USP. Formado no curso de Ciências Biológicas – Biologia Molecular e Tecnológica pela FFCLRP/USP.

 

Sérgio César da Fonseca sobre o autor

Doutorado em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil (2006). Professor Associado da Universidade de São Paulo, Brasil.

 

Artigo Original:

O texto apresentado é uma adaptação do artigo “Da escola para a prisão: uma revisão sobre as relações entre encarceramento, fracasso escolar e racismo”, publicado pela revista Reflexão e Ação em novembro de 2023, de autoria de Piotto, DC Cr; LUPERINI, RS; FONSECA, SC; O artigo original pode ser acessado em: https://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/view/17435.

 

(Editoração: Fernando F. Mecca)

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