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O papel da plasticidade na evolução dos animais vertebrados terrestres


Plasticidade
 do desenvolvimento e a origem dos Tetrápodes

 

Resumo 

A origem dos tetrápodes a partir de seus ancestrais “peixes”, há aproximadamente 400 milhões de anos, foi combinada com a origem da locomoção terrestre e da evolução de membros de suporte (“pernas”). Para compreender como os tetrápodes colonizaram o ambiente terrestre, este estudo analisou modificações no desenvolvimento de um “peixe” de nadadeiras raiadas com características similares às dos ancestrais de tetrápodes, avaliando suas modificações morfológicas e comportamentais quando criado em ambientes de laboratório que simulavam a terra firme. Os resultados levantam a possibilidade de que a plasticidade no desenvolvimento facilitou a origem de características de animais terrestres nos tetrápodes.

 

Plasticidade do desenvolvimento e a origem dos tetrápodes 

A ocupação do ambiente terrestre pelos vertebrados ocorreu associada à evolução de diversas modificações morfológicas e comportamentais. Entre essas modificações, destaca-se a evolução dos membros, os quais apresentam forma e função consideravelmente diferente do seu estado ancestral (nadadeiras).

Os tetrápodes são de uma linhagem de vertebrados derivada diretamente de ancestrais pisciformes (que possuem corpo com forma de “peixe”), originada há aproximadamente 400 milhões de anos. As primeiras linhagens de tetrápodes eram caracterizadas por justamente apresentarem dois pares de apêndices de suporte do corpo, posicionados ventralmente e conectados à coluna, compostos por ossos e músculos especializados na locomoção. Em outras palavras, foram as mudanças nas nadadeiras que precederam a evolução dos membros dos vertebrados ao longo de gerações.

Uma das mudanças comportamentais que aparentemente ocorreu durante a transição evolutiva para a locomoção terrestre é a mudança do posicionamento das nadadeiras. No ambiente aquático, as nadadeiras são posicionadas ao lado do corpo, facilitando propulsão e deslocamento debaixo d’água. Em um ambiente de transição terrestre, por outro lado, um deslocamento eficiente é mais facilmente alcançado quando as nadadeiras peitorais estão posicionadas mais próximas à região média do corpo, o que facilita o deslocamento do animal ao empurrar o substrato contra o corpo e se projetar para frente.

Uma hipótese para a origem dos membros é que o tal comportamento de posicionamento das nadadeiras nas linhagens transicionais de tetrápodes tenha justamente permitido variação durante a evolução dos membros, caracterizado por um mecanismo de plasticidade fenotípica seguido por assimilação genética

Plasticidade fenotípica é a capacidade dos organismos reagirem a estímulos ambientais, exibindo variação na morfologia, fisiologia, comportamento, etc. Essas respostas plásticas são muitas vezes benéficas à sobrevivência dos organismos, e podem contribuir para a ocupação de novos ambientes. 

O interessante é que respostas plásticas podem fornecer substrato de variação do fenótipo, que ao longo de gerações podem se tornar herdáveis e assimiladas ao genótipo das espécies. Por exemplo, se um estímulo ambiental provoca uma resposta plástica por muitas gerações no comportamento dos indivíduos de uma população e essa resposta é benéfica à sobrevivência, com o passar do tempo esse comportamento pode apresentar-se menos plástico (ou seja, mais estável independentemente do estímulo ambiental) e configurar como um caráter herdável nessa população (é importante destacar aqui que o mecanismo não se trata de herança das características adquiridas ao longo da vida dos indivíduos, mas a fixação do caráter ocorre em escala temporal ampla, abrangendo diversas gerações, via processos de seleção natural e/ou evolução neutra que foram diretamente influenciados pela variação plástica presente nas gerações iniciais).

No caso específico da evolução dos tetrápodes, a proposta do artigo foi investigar se linhagens transicionais expostas ao ambiente terrestre apresentariam essas respostas plásticas da morfologia e função das nadadeiras.

Apesar dessas linhagens estarem hoje extintas, é possível inferir a plasticidade fenotípica ancestral usando as espécies viventes mais próximas a estas em termos filogenéticos, ou seja, que divergiram mais recentemente de um mesmo ancestral.

Este trabalho empregou essas questões usando o gênero de peixe Polypterus, que é a espécie vivente mais próxima dos peixes Actinopterygii (todos os peixes ósseos de nadadeira raiada) e Sarcopterygii (peixes ósseos de nadadeira lobada e tetrápodes) e possui diversas semelhanças com os primeiros grupos de tetrápodes: são peixes alongados que podem sobreviver longos períodos fora da água, e são capazes de se deslocarem em meios terrestres usando as nadadeiras peitorais.

Desta forma, os autores avaliaram se a exposição de Polypterus juvenis durante oito meses (até atingirem fase adulta) ao ambiente terrestre implicou em respostas plásticas relacionadas à colonização do ambiente terrestre. A comparação desse grupo com um segundo, o grupo controle criado em ambiente aquático comum a esses animais, permitiu a avaliação de possíveis diferenças de comportamento e morfologia ao longo do desenvolvimento.

 

Comportamento e morfologia da natação versus caminhada

Foi observado que os peixes se locomoviam de maneiras diferentes dentro e fora da água. Na água, os Polypterus possuíram um maior alcance de distância percorrida por batida de nadadeira do que os animais que se deslocaram fora da água – em outras palavras, os animais percorrem uma distância mais rápida nesse ambiente movimentando menos as nadadeiras. Durante a caminhada, isto é, locomoção fora da água, o restante do corpo apresentou mais oscilações, sendo que o corpo e as nadadeiras aqui se movimentaram mais rápido do que na água (Vídeo 1; Figura 1). 

Vídeo 1: Um indivíduo de Polypterus se locomovendo em superfície terrestre. Imagens: Antoine Morin

Os animais que caminharam também apresentaram a curvatura corpórea mais ampla, o rostro (região nasal da cabeça) com posicionamento mais elevado, menor oscilação da cauda e menor elevação das nadadeiras durante a locomoção, bem como posicionavam as nadadeiras mais próximas à linha média do corpo, todas características similares ao que se conhece sobre os ancestrais dos animais tetrápodes terrestres. 

Essas características existem porque no ambiente terrestre os animais receberam treinamentos de locomoção diferentes, reduzindo o atrito do corpo com o substrato e tornando o deslocamento mais eficiente com menor gasto energético.

Além disso, mesmo os peixes que foram criados na água, quando posteriormente estimulados a se locomover no meio terrestre, apresentavam a biomecânica da caminhada distinta dos animais do tratamento em ambiente aquático, demonstrando plasticidade de ao menos um comportamento, independente do ambiente em que se desenvolveu. 

Figura 1: Comportamento de natação e caminhada em Polypterus. A) Esquema de natação. B) Esquema de caminhada. a) Demonstração do movimento de curvatura do corpo durante a locomoção. b) Variação da posição do rostro (região nasal da cabeça) conforme o tempo durante o deslocamento. Imagem: modificada de Standen et al., 2014

Assim como o comportamento e biomecânica, a anatomia dos Polypterus criados em ambiente terrestre também apresentou modificações, como nos ossos da clavícula e do cleitro (Figura 2b). Esses dois ossos compõem a cintura peitoral dos peixes, formando um suporte que conecta a cabeça e o corpo por onde se inserem diversos músculos essenciais à locomoção e alimentação (Figura 2a).

Os animais do tratamento terrestre apresentaram regiões mais longas da clavícula e porções dos dois ossos no geral mais finas e esbeltas (Figura 2b), o que possivelmente favorece a mobilidade das nadadeiras anteriores. Como a locomoção terrestre demanda maior amplitude de movimentação das nadadeiras do que a natação, ossos peitorais mais finos fornecem mais espaço disponível de movimentação das nadadeiras anteriores.

Figura 2: Plasticidade da morfologia dos ossos da nadadeira. a) Posição dos ossos do cleitro (azul) e da clavícula (vermelho) em Polypterus. Escala = 1cm. b) Aproximação dos ossos nos animais em condição controle e experimental. Imagem: modificada de Standen et al., 2014

 

Plasticidade e a origem dos tetrápodes 

Os Polypterus apresentam grande resposta plástica na morfologia e biomecânica dos membros, sendo possível que tal variação associada ao ambiente terrestre estivesse presente também nas primeiras linhagens de tetrápodes.      

Tanto na morfologia quanto no comportamento, os padrões detectados em resposta ao meio terrestre estão associados ao desempenho de locomoção mais eficiente com menor gasto energético. As diferenças na biomecânica da caminhada provavelmente exerceram novos tipos de forças e restrições no esqueleto, que por consequência podem ter influenciado nos diferentes padrões observados de crescimento dos ossos. 

Além disso, os ossos dos peixes desenvolvidos em ambiente terrestre se assemelham com a morfologia da cintura peitoral de espécies fósseis mais antigas da linhagem dos tetrápodes, indicando que as nadadeiras lobadas dos primeiros tetrápodes possivelmente desempenhavam funções semelhantes às dos Polypterus estudados. 

Baseado nos resultados obtidos para os peixes Polypterus, o trabalho sugere que as linhagens transicionais de tetrápodes expostas ao meio terrestre potencialmente exibiram respostas plásticas no comportamento e morfologia, que geraram maiores chances de sobrevivência dos animais sob essa nova condição ambiental. Se existente, essa resposta plástica pode ter fornecido a variação necessária à evolução dos membros, que em uma escala macroevolutiva, facilitou a conquista do meio terrestre pelos vertebrados. 

 

Pesquisa ao seu alcance: Priscila S. Rothier

sobre a autora

Artigo original

O texto apresentado é uma adaptação do artigo “Developmental plasticity and the origin of tetrapods” publicado pela revista Nature em setembro de 2014, de autoria de Standen, E. M.; Du, T. Y. e Larsson, H. C. E. O artigo original pode ser acessado em: https://www.nature.com/articles/nature13708

(Editoração: Gabriela Duarte e Caio Oliveira)

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