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Tumores trabalhando por nós

#Ciência et al. (Especiais temáticos repletos de informações científicas)

Tecnologia usa células de tumores para fabricar anticorpos úteis na nossa saúde

DESTAQUES:
– Hibridomas são células híbridas entre células tumorais (que se replicam rapidamente) e células B (produtoras de anticorpos);
– Anticorpos produzidos por hibridomas são chamados “anticorpos monoclonais” e têm várias aplicações na ciência e na saúde;
– Entre essas aplicações, destacam-se terapias contra a COVID-19 e contra alguns tipos de câncer.

Em nosso corpo, o sistema imune é aquele que possui os personagens envolvidos na defesa do nosso corpo contra invasores potencialmente perigosos à nossa saúde. Algumas das células que fazem parte do sistema imune utilizam, como arma, os anticorpos, termo que provavelmente você já ouviu falar, e se refere às proteínas que combatem os antígenos, ou seja, qualquer elemento estranho ao organismo, como vírus ou bactérias. Costumam existir apenas alguns anticorpos que reconhecem um determinado antígeno. Isso porque esses anticorpos se ligam aos antígenos por meio do formato de uma porção de sua estrutura chamada de epítopo.

Nessa interação de combate, quanto mais forte ou específica for a ligação, maiores são as chances do invasor ser derrotado. Diante disso, estudos iniciados na segunda metade do século XX permitiram o desenvolvimento dos chamados anticorpos monoclonais, ou mAbs, bastante promissores para a área da saúde e da biotecnologia.

tumores anticorpos
Figura 1. Representação gráfica de um anticorpo. O anticorpo é basicamente composto por duas partes: a região variável, que se liga ao alvo, e a região constante, que se liga a células imunes. Imagem: adaptado de Cancer Research Institute.

 

Como são produzidos os anticorpos?

Os anticorpos monoclonais foram descobertos em 1975 por G. Kohler e C. Milstein. São anticorpos advindos de uma célula híbrida, obtida por meio da fusão entre uma célula B (produtora de anticorpos) e uma célula tumoral a partir de técnicas biotecnológicas, formando o chamado hibridoma, que é, basicamente, a máquina da qual se retira o produto final.

Em um primeiro momento, pode parecer assustador pensar que algo produzido com células de tumores seja utilizado em tratamentos. Por isso, alguns pontos devem ser esclarecidos. Primeiramente, por que são utilizadas essas células? Justamente pela característica dessas células de se reproduzirem sem limites, ou seja, possuem uma grande resistência à morte. Assim, toda técnica de produção não precisa ser refeita com tanta frequência, pois é gerada, logo no primeiro momento, uma fonte de anticorpos bastante duradoura. Isso não aconteceria se fossem usadas apenas as células produtoras de anticorpos, visto que uma única mãe não é capaz de originar tantas gerações, assim como a célula tumoral não produziria nenhum anticorpo se não fosse fusionada com sua colega que possui essa capacidade (um verdadeiro exemplo de que juntas ambas são melhores).

Um segundo risco que você pode ter pensado é o de células “descontroladas” começarem a se reproduzir indefinidamente em seu corpo, prejudicando a sua saúde de alguma forma. Entretanto, é importante destacar que as células tumorais (mesmo as já fusionadas) não são aplicadas diretamente no paciente. Na realidade, o hibridoma fica no laboratório, sobre a placa onde é cultivado, trabalhando na produção dos anticorpos monoclonais, que são coletados e usados somente depois de passarem por purificação.

Além disso, com o desenvolvimento das técnicas de produção dos anticorpos monoclonais e com o avanço nas pesquisas, muitos problemas relacionados à segurança dessa técnica puderam ser solucionados. Por exemplo, para evitar reações indesejadas, oriundas das possíveis incompatibilidades entre os sistemas imunes dos animais (dos quais as células são obtidas) e humanos, os anticorpos agora passam por um processo chamado de humanização, garantindo que sua estrutura fique muito próxima àquela encontrada originalmente no corpo humano, o que aumenta as chances de serem aceitos por nosso organismo.

Vantagens dos mAbs

Os mAbs são utilizados em situações de estudo e tratamentos, nos quais a precisão e a consistência das ligações dos anticorpos têm prioridade sobre custos de produção a curto prazo. Uma outra classe, a de anticorpos policlonais, pode ser produzida em grandes volumes por meio da coleta de plasma (parte líquida do sangue, que contém proteínas) de animais. Logo, são mais baratos, mas não possuem os mesmos benefícios dos mAbs.

Devido ao fato de serem produzidos por células idênticas, os mAbs mantêm um alto grau de consistência ao longo de diferentes lotes. Já os lotes de anticorpos policlonais são bem variados entre si, pelo fato de que é muito difícil controlar o sistema imune de um animal que vai servir de fonte. Os mAbs de uma mesma fonte vão ter sempre a mesma composição, então eles podem ser usados em tratamentos e estudos que, ao serem repetidos, fornecem o mesmo resultado.

A alta especificidade dos mAbs faz com que eles se liguem a um único epítopo, permitindo uma ligação precisa apenas aos antígenos de interesse. Além disso, o controle da produção dos mAbs permite a eliminação da redundância, isto é, não são produzidos anticorpos diferentes para um mesmo ligante, impedindo a competição entre os anticorpos e aumentando, assim, a sua eficiência.

Aplicações dos mAbs

Os anticorpos monoclonais, justamente por serem específicos, são muito promissores para o uso em terapias, tendo em vista que possuem poucos efeitos colaterais. Eles podem ser aplicados tanto intactos, quanto acoplados a outras moléculas, com o objetivo de destruir ou inibir uma célula maligna, ou mesmo suprimir o sistema imune.

Existem dezoito tipos diferentes de anticorpos monoclonais aprovados para uso terapêutico, cada um deles com uma aplicação, como: tratamentos para asma e rinite alérgica, diminuindo os sintomas através de aplicação subcutânea; prevenção da doença aguda de enxertos versus hospedeiro em transplantes de órgãos maciços (principalmente o rim), com cinco doses de mAbs com 14 dias de diferença, reduzindo a taxa de rejeição do transplante; quimioterápicos utilizados em casos de linfoma em tratamentos de longa duração; uso na doença de Crohn, com dose única de mAbs ou três doses dependente do caso.

Terapia contra o câncer

Outra aplicação interessante dos mAbs é como aliados na eliminação das células do câncer. Pensemos no seguinte cenário: nosso sistema imune é como um jogador de tiro ao alvo identificando o que não pertence ao nosso corpo como um alvo, por exemplo as bactérias, e agindo para eliminá-lo através de um tiro preciso. No entanto, como as células do câncer são parte do nosso corpo, mesmo que defeituosas, é mais difícil para o sistema imune identificar que algo está errado com elas. Por meio esta tecnologia, cientistas conseguem criar anticorpos específicos para as células cancerosas, que são capazes de se ligarem a essas células, impedindo algumas de suas funções e, principalmente, de colocá-las na mira do sistema imune. Assim, o sistema imune consegue mais facilmente enxergar e mirar nas células cancerígenas, eliminando-as.

Terapia contra a COVID-19

Recentemente, no final de 2020, a agência regulatória americana (FDA) liberou o uso de anticorpos monoclonais no combate à COVID-19. O tratamento, de forma emergencial, é voltado aos pacientes infectados com o coronavírus que apresentam sintomas leves a moderados, ajudando, se aplicado no início da infecção, a evitar que a pessoa desenvolva sintomas severos da doença e seja hospitalizada. Para a população que possui alguma comorbidade, como doenças respiratórias crônicas, maiores de 65 anos ou obesidade, esse tipo de tratamento representa um alento contra a COVID-19. Entretanto, a aplicação do anticorpo monoclonal não deve ser feita em pacientes já hospitalizados ou que necessitem de oxigenação. É válido comentar que o uso de mAbs pode causar alguns desconfortos (efeitos colaterais), tais como alergias, náusea, vômito, entre outros.

Os anticorpos monoclonais conseguem ajudar os pacientes com COVID-19, pois eles se ligam muito fortemente em uma proteína chamada Spike, que fica espalhada pela superfície do vírus. Essa proteína é necessária para que o vírus infecte as células do paciente, de modo que a ligação dos mAbs a elas impedem que o vírus se multiplique, tornando mais fácil o próprio corpo combater o vírus, já que diminui a quantidade de vírus no corpo do paciente. No entanto, é importante ressaltar que as vacinas, o uso de máscara e o isolamento social são as medidas mais simples e eficazes para diminuir o número de infecções e ajudar a conter o avanço da pandemia.

É necessário fazer mais estudos com anticorpos monoclonais, principalmente porque o SARS-CoV-2, vírus que causou a atual pandemia, gera variantes que, possivelmente, conseguiriam escapar da eficácia dos anticorpos monoclonais. Isso porque modificações pequenas na proteína Spike fazem com que o vírus fique muito melhor em infectar as células humanas e o anticorpo monoclonal perderia seu maior trunfo: a sua especificidade alta para um único antígeno (proteína Spike, neste caso). Hoje, até mesmo a Anvisa, agência reguladora brasileira, já liberou o uso desse tratamento, que, em conjunto com as vacinas, o isolamento social e o uso de máscaras, pode nos ajudar a superar este enorme desafio.

Apesar da invenção desta técnica biotecnológica ter várias décadas, o uso dela para tratamentos clínicos é recente. As possibilidades são muitas para se aventurar, o que torna a ciência um mundo fascinante, pois nunca se sabe quando uma pesquisa pode salvar vidas, como foi o caso de inúmeras nesta pandemia. É válido lembrar que essa técnica trouxe um Prêmio Nobel de medicina/fisiologia em 2018. É de se pensar: quantos prêmios não merecem todas as pessoas que trabalharam para chegarmos nesse nível biotecnológico tão avançado? Muita pesquisa ainda será feita; o futuro nos aguarda, cheio de esperança e descobertas interessantes! 

 

Colaboração:

Eduarda Pires sobre a autora

Júlio César de Souza Cassiano sobre o autor

Karolina Santos Esteves sobre a autora

Pedro De Sordi Rezende sobre o autor

Pietra Spagnol Tomazela sobre a autora

Sarah Solovi Rodrigues sobre a autora 


Eduarda Pires, Júlio César de Souza Cassiano, Karolina Santos Esteves, Pedro De Sordi Rezende, Pietra Spagnol Tomazela e Sarah Solovi Rodrigues são alunos do curso de graduação em Ciências Biomédicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP, assim como autores de outros conteúdos deste mês. Fique de olho para saber mais!

 

Fontes e referências bibliográficas:

Artigo científico  intitulado “Aplicações terapêuticas dos anticorpos monoclonais”, publicado na Revista Brasileira de Alergia e Imunopatologia em 2006, de autoria de Santos, R.V.; Lima, P.M.G.; Nitsche, A.; e colaboradores.

Artigo científico intitulado “Monoclonal antibodies”, publicado na revista Molecular Pathology em 2000, de autoria de Nelson, P.N.; Reynolds, G.M.; Waldron, E.E.; e colaboradores.

Artigo científico intitulado “Monoclonal Antibodies, Bispecific Antibodies and Antibody-Drug Conjugates in Oncohematology”, publicado na revista Recent Patents on Anti-Cancer Drug Discovery em 2020, de autoria de Mihăilă, R.G.

Artigo científico intitulado “Neutralizing antibodies for the prevention and treatment of COVID-19”, publicado na revista Cellular and Molecular Immunology em 2021, de autoria Du, L.; Yang, Y.; e Zhang, X.

Artigo científico intitulado “Neutralizing monoclonal antibodies for treatment of COVID-19”, publicado na revista Nature reviews Immunology em 2021, de autoria de Taylor, P. e colaboradores. 

Matéria no site da American Cancer Society intitulada “Monoclonal Antibodies and Their Side Effects”, publicada em 27/12/2019. (Website

Matéria do site do Houston Methodist Leading Medicine intitulada “What Is Monoclonal Antibody Therapy & Who Is Eligible to Receive It?”, publicada em 20/08/2021. (Website)

Matéria no site do Jornal da USP intitulada “Anticorpos monoclonais surgem como estratégia importante de combate à covid-19”, publicada em 05/05/2021 (Website).

Matéria no site do National Health Institute intitulalada “Anti-SARS-CoV-2 Monoclonal Antibodies”, publicada em 19/10/2021. (Website)

Matéria do site Oncoguia intitulada “Anticorpos monoclonais”, publicada em 14/06/2018. (Website

Matéria no site PEBMED intitulada “Anvisa aprova uso de anticorpos monoclonais para o tratamento de Covid-19”, publicada em 21/04/2021. (Website

Matéria no site da UPMC Medicine  intitulada “UPMC and Pitt Provide First Results of Largest Comparative Randomized Trial of Monoclonal Antibody Treatment for COVID-19”, publicada em 08/09/2021. (Website)

Matéria do site da U.S. Food and Drug Administration intitulada “Coronavirus (COVID-19) Update: FDA Authorizes Monoclonal Antibodies for Treatment of COVID-19” publicada em 09/02/2021. (Website)

Matéria do site Veja Saúde intitulada “O que é um anticorpo monoclonal?”, publicada em 29/12/2019. (Website)

Matéria do site Viva Bem Uol intitulada “Tratamento para coronavírus: o que são os anticorpos monoclonais, possível alternativa até que se encontre a vacina contra covid-19”, publicada em 26/08/2020. (Website)

 

(Editoração: Beatriz Spinelli, Fernando Mecca e Loren Pereira)

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