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Gênese das doenças do sistema reprodutor feminino?
Destaques: – A menstruação com sangramento é um fenômeno recente, do ponto de vista evolutivo, com ocorrência conhecida em pelo menos 78 espécies; – Mamíferos que não tem menstruação com sangramento podem ter ovulação, que ocorre apenas em contexto propício à fecundação, e o endométrio é reabsorvido; – A evolução do sangramento pode estar relacionada a fatores como expulsão de embriões defeituosos, remoção de agentes patogênicos, mas ainda há debates a este respeito; – As mulheres têm tido sua menarca mais cedo e engravidado mais tarde, e estes fatores podem estar associados a maior ocorrência de endometriose. |
A menstruação é um processo fisiológico que demorou séculos para ser compreendido: da perspectiva evolutiva, o ciclo menstrual difere entre espécies e, nos mamíferos, está associado ao sangramento. O surgimento do útero foi uma importante novidade evolutiva que protege o embrião do ambiente externo e favorece a perpetuação da espécie. Entretanto, quais mudanças adaptativas ocorreram nos organismos femininos envolvendo a gestação de um corpo estranho? Quais as vantagens e desvantagens da menstruação para a mulher moderna?
Saúde menstrual: uma preocupação da OMS
Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), “saúde” não é apenas ausência de enfermidade, mas a associação entre o bem-estar físico, mental e social. Para as mulheres, isso inclui saúde menstrual, pois qualquer perturbação (dor, excesso de sangramento, alteração de humor, etc.) neste ciclo pode comprometer seu bem-estar.
A menstruação ocorre quando um óvulo que é liberado durante a fase lútea do ciclo menstrual não é fertilizado. Classicamente, a menstruação é definida como o derramamento da camada superior do revestimento uterino, chamada endométrio e pode ser considerada completa, ou seja, com sangramento, ou sem sangramento.
A menstruação com sangramento é descrita em pelo menos 78 espécies de primatas, em quatro espécies de morcegos e em uma pequena espécie de musaranho-elefante (Elephantulus myurus). Recentemente, foi observado pela primeira vez a ocorrência de menstruação em um roedor, o rato-espinhoso da espécie Acomys cahirinus.
Nas espécies que não possuem menstrução com sangramento, o ciclo menstrual e a fertilização ocorrem normalmente, entretanto o endométrio é reabsorvido ou a ovulação só ocorre por estimulação do ambiente em um momento propício para o acasalamento e a fertilização. O sangramento no processo menstrual é uma característica evolutiva recente e nos dá pistas importantes para entender as possíveis alterações no sistema reprodutor feminino.
Evolutivamente falando: qual o significado da menstruação?
Conceitos sobre o significado fisiológico da menstruação com sangramento datam dos séculos III e IV a. C., uma vez que os pensadores da época acreditavam que o embrião se formava quando sêmen (palavra de origem grega) coagulava o sangue menstrual. Somente em 1666 Willian Harvey invalidou esta ideia com a clássica publicação “Exercitationes de generatione animalium”.
Apesar do esclarecimento de Harvey, muitas tentativas ainda buscavam compreender o papel fisiológico da menstrução. Claramente, as ideias do naturalista Charles Darwin tiveram influência, uma vez que o cerne do pensamento de Darwin era que se um processo sobrevive à seleção natural, ele deve ser benéfico ou, pelo menos, não prejudicial. Sendo assim, a menstrução foi explicada como uma tentativa do corpo de se livrar de embriões defeituosos, remover agentes patogênicos depositados no útero, terminar o ciclo reprodutivo rapidamente, etc. Nada destas afirmações nos leva a alguma conclusão clara.
Entretanto, se considerarmos o desenvolvimento e a evolução do útero, é possível identificar pistas importantes para entender o processo fisiológico menstrual. Vale lembrar que durante milhões de anos o ambiente aquático era o único meio pelo o qual as espécies de vertebrados se reproduziam; a fecundação interna evoluiu a partir da fecundação externa, em que os machos lançam os espermatozoides na água, e as fêmeas lançavam os óvulos. A medida em que a água foi deixando de ser o ambiente dos primeiros vertebrados terrestres e, consequentemente, o local de fertilização, originaram-se novas adaptações capazes de proteger o embrião do ambiente terrestre, seco e pobre de nutrientes.
O surgimento dos primeiros ovos com casca permitiu dois importantes papéis: proteger o embrião das avarias terrestres, por meio de uma casca protetora, e mantê-lo nutrido, por meio de uma gema altamente nutritiva. A fertilização interna, ou seja, dentro do organismo feminino, teve duas consequências importantes para a evolução dos vertebrados. Primeiro, o zigoto produzido dentro do organismo feminino carrega genes diferentes dos da mãe, de modo que as fêmeas portam tecidos embrionários geneticamente estranhos à mãe, culminando em uma reação inflamatória que coevoluiu com um sistema de resposta imune. Em segundo lugar, a presença do embrião dentro do Ducto de Müller implicou na evolução do útero como um órgão especializado.
O Ducto de Müller é uma estrutura importante na reprodução de alguns peixes e responsável pela formação do útero nas mulheres. As alterações evolutivas subsequentes no Ducto de Müller estão relacionadas à proteção e nutrição do embrião.
A menstruação não é algo ao acaso, mas um produto de milhões de anos de evolução envolvendo modificações no Ducto de Müller em resposta a restrições ambientais, favorecendo a fertilização dentro do organismo feminino e a reprodução em ambiente seco.
Quais as consequências da fertilização interna?
Apesar de parecer extremamente lógico proteger o embrião dentro do organismo feminino, o processo de implantação do mesmo é altamente invasivo, promovendo uma resposta inflamatória e posteriormente imune contra o organismo até então desconhecido pelo corpo da mãe.
Dentro do útero, logo após a implantação do embrião, há uma série de respostas do endométrio, como o inchaço por acúmulo de líquidos, seguido por invasão de células de defesa e a produção de células especializadas que formam uma massa sólida de tecido ao redor do embrião, protegendo-o. Neste ponto, o hormônio progesterona assume um papel importante, pois contribui para o processo de implante, controlando a primeira resposta inflamatória. Tudo isso culmina para o início da gravidez.
Assim, quando não ocorre a fertilização, há ruptura do endométrio com sangramento, o que classicamente conhecemos como menstruação.
Endometriose: uma doença contemporânea?
Como podemos observar, a menstrução é um processo fisiológico que levou milhões de anos para assumir a presente forma e envolveu uma série de mudanças cíclicas hormonais e de adaptações dos mecanismos de defesa imune. Atualmente, com o aumento no índice de doenças associadas ao sistema reprodutor feminino, o processo menstrual tornou-se alvo de estudos para a busca da origem das doenças sexo-específicas. Nesse contexto um grande projeto chamado “InterLACE study “, que na verdade é um estudo clínico observacional, surgiu a partir de uma rede internacional de colaboração com o objetivo de entender e avaliar a saúde reprodutiva das mulheres e as possíveis doenças crônicas associadas.
Em 2019, uma importante parte do estudo foi publicada, correlacionando a idade da primeira menstrução e gestação com doenças crônicas do sistema reprodutor feminino, como a endometriose. A primeira análise, publicada na revista “Human Reprodution”, comparou a média de idade da primeira menstruação e gestação em 505.147 mulheres nascidas em diversos países, incluindo Austrália, EUA, Japão, Oriente Médio e Reino Unido, durante as décadas de 1930, 1970 e 1980.
Nas mulheres nascidas em 1930, a primeira menstrução (menarca) ocorreu por volta dos 14 anos e a primeira gestação por volta dos 24 anos, enquanto nas nascidas entre 1970 e 1984, a média de idade foram 12 anos para a menarca e 27 anos para gravidez. Isso significa que, durante esse período, as mulheres passaram a menstruar mais cedo e a ter filhos mais tarde, passando mais tempo menstruando. O resultado do “InterLACE study” abriu uma nova perspectiva para entender o motivo pelo qual as mulheres estavam menstruando mais cedo e qual a correlação com doenças crônicas como a endometriose.
A endometriose é considerada uma doença da mulher moderna e de origem parcialmente desconhecida, que acomete 10% das mulheres em idade reprodutiva e 50% das mulheres com infertilidade. A Associação Brasileira de Endometriose e Ginecologia Minimamente Invasiva estima que 6 milhões de brasileiras apresentam a doença, que tem como principais sintomas dor pélvica e infertilidade.
Do ponto de vista patológico, a endometriose é caracterizada pela presença de glândulas endometriais e estroma fora da cavidade uterina (endométrio ectópico), e geralmente é associada a um processo inflamatório crônico devido ao aumento de substâncias chamadas de interleucinas e prostaglandinas. Em 2008, o centro de pesquisa do “California Teachers Study” correlacionou o desenvolvimento de adenomiose – um distúrbio semelhante a endometriose – com a menarca precoce.
Em conclusão, os estudos clínicos estão avançando e esclarecendo o perfil do sistema reprodutor feminino atual bem como as possíveis causas da endometriose, enquanto paralelamente a ciência básica busca, na história evolutiva, os mecanismos associados as alterações no sistema reprodutor feminino, bem como possíveis tratamentos. Em conjunto, o entendimento destes fatores será uma grande prestação de futuros serviços de saúde e atenção primária para a mulher.
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Colaboração: Tiago Januário da Costa sobre o autor
*Agradecimentos do autor: Prof. Dr. Gustavo Ballejo de Olivera (análise científica do texto)
Fontes consultadas:
– Artigo científico intitulado “Menstruation: science and society”, publicado na revista Journal of Obstetrics and Gynaecology em 2020, de autoria de Critchely, H.; Babayev, E.; Bulun, S.; e colaboradores
– Artigo científico intitulado “First evidence of a menstruating rodent: the spiny mouse (Acomys cahirinus)”, publicado na revista American Journal of Obstetrics and Gynecology em 2016, de autoria de Bellofiore, N.; Ellery, S.; Mamrot, J.; e colaboradores.
– Artigo científico intitulado “The evolution of menstruation: A new model for genetic assimilation”, publicado na revista Bioessays em 2011, de autoria de Emera, D.; Romero, R.; Wagner, G.
– Artigo científico intitulado “Why do women menstruate? Historical and evolutionary review”, publicado na revista European Journal of Obstetrics & Gynecology and Reproductive Biology em 1996, de autoria de Finn, A.
– Artigo científico intitulado “Implantation, menstruation and inflammation”, publicado na revista Biological reviews of the Cambridge Philosophical Society em 1986, de autoria de Finn, C.
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(Editoração: Priscila Rothier, Fernando Mecca e Caio Oliveira)