Image default

Característica adquirida por alteração do ambiente pode ser herdada

Herança de fenótipo ambiental por várias gerações em modelo animal

 

Resumo

O fenótipo é resultado da interação do genótipo com o ambiente e representa as diversas características observadas nos organismos. Normalmente, apenas o genótipo de um organismo é transmitido aos seus descendentes; contudo, em alguns casos, esses descendentes podem apresentar memória de um fenótipo desencadeado por um efeito ambiental específico. Este artigo apresenta um desses casos ocorridos em um modelo biológico clássico, o nematóide Caenorhabditis elegans, assim como uma possível explicação de como isso ocorreu neste caso. Tal explicação envolve uma herança epigenética, na qual não é a sequência de nucleotídeos do DNA que é alterada e transmitida, mas sim mudanças na condensação do DNA e na expressão gênica.

 

Influência do ambiente na expressão gênica

O fenótipo de um organismo é resultado da interação de seu genótipo com o ambiente no qual se encontra. Dessa forma, as características de um mesmo organismo podem ser diferentes caso ele se encontre em ambientes muito distintos. Por exemplo, no caso do nematóide Caenorhabditis elegans temperaturas diferentes podem alterar a expressão de alguns genes, como o daf-21.

Neste artigo, os autores desenvolveram indivíduos que possuíam uma ou múltiplas cópias de um gene repórter (GFP ou cherry) com o promotor do gene daf-21 (Figura 1), em uma região de heterocromatina. Desta forma, a expressão de daf-21 causaria simultaneamente a expressão destes genes repórteres, permitindo fácil detecção dessa atividade intracelular.

Figura 1. Esquema demonstrando os genótipos associados aos genes repórteres GFP (verde) e cherry (vermelho) utilizado pelos autores com o promotor do gene daf- 21 (preto). (A) Genótipos de cópia única. (B) Genótipos de múltiplas cópias. Imagem: Gabriel José De Carli

Ao transferir os indivíduos de C. elegans da temperatura de 20 °C para 25 °C, ocorre um aumento na expressão do gene repórter, isto é, o promotor daf-21 aumenta sua expressão. O resultado é a coloração diferente dos indivíduos de acordo com o gene repórter, verde para GFP e vermelho para cherry. Essa observação é um exemplo muito claro de como o fenótipo de um organismo (no caso a coloração) pode ser influenciado por uma variável ambiental (temperatura) modulando o genótipo (aumento da expressão do gene repórter) do organismo.

 

Herança aos descendentes e modificação de histonas

Neste trabalho, verificou-se que os descendentes dos indivíduos que viveram a temperaturas de 25 °C continuaram com aumento na expressão do gene repórter por, no mínimo, mais 4 gerações. Em alguns casos, dependendo do número de cópias do gene repórter, o aumento na expressão durava até 14 gerações. Em todos esses casos, os descendentes nunca tinham sido expostos a temperaturas de 25 °C. Ou seja, em tais descendentes não houve a influência do ambiente no fenótipo.

A fim de explicar essa memória de expressão nos descendentes os autores realizaram cruzamentos entre diferentes linhagens de C. elegans: fêmeas que apresentavam aumento de expressão (25 °C) com machos que não apresentavam expressão (20 °C), e vice-versa. O resultado foi que todos os descendentes de ambos os cruzamentos apresentavam o aumento de expressão e a conclusão foi de que ambos, espermatozoides e óvulos são capazes de transmitir essa herança.

A transmissão de informações dos indivíduos parentais a seus descendentes ocorre por meio das informações presentes nos gametas destes parentais. Uma vez já demonstrado que o próprio genótipo dos descendentes era responsável pela expressão do gene repórter, os autores decidiram investigar alterações no genótipo que alteram a expressão gênica.

Dentre os fatores que podem mediar alterações na expressão de genes estão as alterações epigenéticas, das quais as mais comuns são a metilação do DNA e a modificação de histonas. Os autores investigaram possíveis alterações em histonas comparando as presentes em indivíduos que viveram a 16 °C com indivíduos que viveram a 25 °C. A diferença encontrada foi a diminuição da modificação H3K9me3 nos indivíduos que viveram a 25 °C em relação ao grupo que viveu a 16 °C.

A modificação H3K9me3 torna o DNA mais condensado, diminuindo a expressão gênica no local. A diminuição de H3K9me3 em si não aumenta a expressão gênica, mas impede sua repressão. No caso específico deste trabalho o aumento da expressão gênica se deve à natureza do promotor daf-21 que em temperaturas elevadas aumenta a expressão do gene ao qual está associado.

Histonas são proteínas passíveis de serem modificadas, contudo tais modificações dependem da ação de proteínas específicas. A proteína responsável pela modificação H3K9me3 é denominada SET-25. Ao silenciar o gene responsável por codificar a proteína SET-25, o resultado foi a ocorrência da expressão do gene repórter mesmo em temperaturas baixas, concluindo que a repressão de daf-21 (e consequentemente dos genes repórteres) em temperaturas baixas é dependente da modificação H3K9me3, causada pela SET-25.

Uma característica, para ser transmitida aos descendentes, deve estar presente nos gametas, assim como nas células que darão origem aos gametas, a linhagem germinativa. Indivíduos jovens que foram transferidos para temperaturas de 25 °C antes de atingir a fase adulta também possuíam menores quantidade de H3K9me3, portanto temperaturas altas são capazes de alterar a atividade de SET-25 na linhagem germinativa durante o desenvolvimento destas células (gametas). Consequentemente, essa característica torna-se passível de ser herdada pelas próximas gerações.

 

Modelo para herança epigenética em C. elegans

A partir das informações obtidas, os autores foram capazes de propor um modelo para explicar como ocorreu uma herança de informação epigenética neste caso (Figura 2). Altas temperaturas (25 °C) podem inibir a atividade de SET-25 em células somáticas, assim como no desenvolvimento dos gametas em C. elegans. Com SET-25 não ativa, há a diminuição da modificação H3K9me3 nos gametas, e tal informação é transmitida aos seus descendentes que passam a expressar o gene repórter em células somáticas mesmo nunca tendo sido expostos a altas temperaturas. Após várias gerações em temperaturas menores (16 °C ou 20 °C), SET-25 é capaz de novamente aumentar a quantidade da modificação H3K9me3, reprimindo a expressão do gene repórter.

Figura 2. Modelo proposto para explicar a herança epigenética observada durante o estudo. Os avós (F-1) que se desenvolvem a temperaturas de 20°C não apresentam modificações na modificação H3K9me3 (bandeira vermelha) na linhagem germinativa e nas células somáticas. Entretanto, quando os indivíduos parentais (F0) são transferidos a temperaturas de 25 °C, ocorre a inibição de SET-25 e consequentemente a diminuição da modificação H3K9me3 na linhagem germinativa e nas células somáticas. Caso os descendentes dos indivíduos parentais (F1 e F2) sejam novamente transferidos a 20 °C, são necessárias várias gerações para que SET-25 consiga reprimir a expressão do gene repórter. Imagem: modificada de Klosin et al.2017.

 

Pesquisa ao seu alcance: Gabriel José De Carli

sobre o autor

Artigo original

O texto apresentado é uma adaptação do artigo “Transgenerational transmission of environmental information in C. elegans”, publicado na revista Science em abril de 2017, de autoria de A. Klosin, E. Casas, C. Hidalgo-Carcedo, e colaboradores. O artigo original pode ser acessado em http://science.sciencemag.org/content/356/6335/320.

(Editoração: Fernando Mecca, Gabriela Duarte e Caio Oliveira) 

Postagens populares

Emulsões podem substituir corantes artificiais em bebidas

IDC

“Eu acho que vi um gatinho!”

IDC

Como se relacionam os índices de fracasso escolar, racismo e encarceramento?

IDC

O que os estudantes brasileiros pensam sobre o oceano?

IDC

Crenças e atitudes sobre tubarões e as implicações para sua conservação

IDC

A importância da fermentação na civilização humana

IDC