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Neuroplasticidade: o cérebro muda!

#Pesquisa ao seu alcance (Artigos científicos em linguagem simplificada)

Sobre
Categoria: Artigo – Revista Eletrônica Frontiers for Young Minds
Título original: Neuroplasticity: The Brain Changes Over Time!
Ano de publicação: 2020
Link do artigo original: https://kids.frontiersin.org/articles/10.3389/frym.2020.522413

Resumo

Talvez você não imaginasse, mas o cérebro está sempre mudando – ele se adapta a boas e más experiências de vida. Nós chamamos isso de neuroplasticidade. Apesar de a neuroplasticidade normalmente nos ajudar a lidar com problemas, algumas vezes as coisas dão errado, e as mudanças produzidas pela neuroplasticidade são danosas à pessoa. Nesse artigo, cobrimos dois casos de neuroplasticidade, um positivo e um prejudicial. O positivo é sobre mudanças que ocorrem quando somos jovens e temos boas experiências sociais. O prejudicial é sobre a síndrome do membro fantasma: um fenômeno estranho sentido por amputados em membros e órgãos… que não existem mais!

 

O QUE É NEUROPLASTICIDADE?

Todos nós já ouvimos frases como “o cérebro é uma estrutura muito complexa!” ou “o cérebro comanda todas as funções corporais!”, mas o que poucos de nós sabemos é que o cérebro não está lá sentado sem mudanças dentro de nossos crânios. Ele está sempre se adaptando a todos os tipos de diferentes coisas e situações. Quando você terminar este artigo, nós garantimos que seu cérebro estará diferente!

O cérebro se modifica através de um processo chamado neuroplasticidade. Vamos decodificar essa palavra. Neuroplasticidade é a combinação de dois termos: neuro e plasticidade. Quando falamos de algo relativo ao cérebro, usamos o prefixo neuro. O segundo termo, plasticidade, se refere ao fato de que o cérebro está sempre se transformando. Quando você encontra alguém ou aprende um novo fato, seu cérebro muda sua estrutura e função. O ambiente pode mudar nosso cérebro, ainda que nós não estejamos cientes disso. Alguns eventos mudam a forma como as células do cérebro se comunicam umas com as outras, fortalecendo ou enfraquecendo essa comunicação. Outros eventos definirão como o cérebro interpreta as coisas. Todas essas mudanças acabam modificando nossos comportamentos!

Antes de prosseguirmos para os exemplos, nós devemos considerar duas questões. Primeiro, a neuroplasticidade muda com a idade. Conforme envelhecemos, o cérebro continua encontrando diferentes formas de lidar com coisas e situações novas [1, 2]. Essa habilidade está relacionada com a saúde do cérebro. Por que pessoas mais velhas que sempre se exercitaram e leram muitos livros cativantes são menos esquecidas? Porque um cérebro ativo e saudável mantém recursos mentais que podem ser usados, quando estiver mais velho, para se modificar. A segunda questão que devemos considerar é de que alguns eventos neuroplásticos podem não ser úteis para nós e até ser extremamente prejudiciais! Isso é o que nós chamamos de plasticidade maladaptativa [3]. 

EXPERIÊNCIAS SOCIAIS E NEUROPLASTICIDADE

Bom, nós sabemos que devemos sempre tentar praticar atividades envolventes para favorecer as habilidades do cérebro, e que isso será muito importante se quisermos manter cérebros saudáveis conforme ficamos mais velhos. Mas há benefícios da neuroplasticidade para o cérebro jovem? A resposta é um definitivo SIM! Cientistas descobriram que existem certas janelas de tempo em nossas vidas durante as quais o aprendizado e o desenvolvimento do cérebro são fortalecidos. Isso é verdade para vários sistemas, tais como o sistema visual, e até outros mais complexos, como o sistema de cognição social, que é o grupo de regiões do cérebro que nos ajuda a entender informações sociais. Nós chamamos esses períodos de aumentada plasticidade de períodos críticos.

Existem períodos críticos para a neuroplasticidade também. Em nosso primeiro exemplo, nós veremos como o ambiente influencia o aprendizado social em um período crítico durante a adolescência. Primeiro, vamos mergulhar por um momento na estrutura microscópica do cérebro.

O cérebro é formado por muitas células nervosas, chamadas neurônios. Em quase todas as regiões do cérebro, os neurônios passam por mielinização, sendo o envelopamento de neurônios por uma membrana gordurosa (rica em lipídios) chamada mielina. A mielinização aumenta muito a eficiência do trabalho do cérebro. Entretanto, o período crítico para a mielinização dos neurônios é diferente em cada região do cérebro. A parte do cérebro que nos ajuda a compreender emoções, memória e informação social, chamada córtex pré-frontal medial (CPFm) é uma das últimas regiões a receber mielina. A mielinização do CPFm ocorre durante a adolescência. 

A adolescência é um período difícil no desenvolvimento de nossas habilidades sociais pois é quando começamos a ter interações mais próximas com amigos e adultos. Nossos cérebros têm de lidar com uma enorme quantidade de informação social nesse período, conforme nós nos perguntamos coisas como “de quem eu estou gostando?” ou “como eu devo falar com ele/ela e convidá-lo/a para sair?”. Os neurônios do cérebro têm de conversar entre eles em circuitos neurais complexos para ajudar a pessoa a navegar o mundo social. Tudo tem de estar funcionando se nós esperamos manejar essas situações apropriadamente.

O problema é que nós não nascemos prontos para tais interações. Apesar de as células do cérebro e os circuitos estarem todos lá, nós primeiro precisamos aperfeiçoar esses circuitos e otimizar seu funcionamento.

Há não muito tempo, cientistas descobriram que, durante a adolescência, alguma coisa dispara a mielinização dos neurônios no CPFm, e isso nos ajuda a lidar melhor com as situações sociais. O interessante é: o evento que dispara esse processo de mielinização é a interação social! Para esclarecer: se você quer ser bom em interações sociais, você tem que primeiro interagir! Esse é um desses casos em que “a prática leva à perfeição”. Evidências recentes mostram que, entre os 15 a 20 anos de idade, o cérebro está no seu pico de potencial de transformação [4]. Lembra-se do período crítico? Nós sabemos que se não nos envolvermos em experiências sociais durante a adolescência, os circuitos do CPFm não se mielinizam, e isso vai afetar toda a nossa vida pós-adolescência. 

Pesquisadores mostraram que se um camundongo jovem for privado de contato social, ele evitará interações com outros camundongos [5]. Experiências sociais durante esses períodos críticos são tão importantes que, mesmo que o animal isolado depois seja alojado junto de outros camundongos, ele não recupera seu comportamento normal. Então, uma vez que a janela temporal se fecha, se houve falta de experiências sociais apropriadas, o comportamento social está para sempre afetado.

UM CONTO DE FANTASMAS E PLASTICIDADE MALADAPTATIVA

Guerras e doenças podem causar muitas consequências terríveis, incluindo a amputação de um membro. Amputação é uma condição triste, mas pode também ser assustadora. Algumas pessoas que tiveram seus membros amputados têm a sensação física de que a parte amputada ainda existe. Essa experiência fantasmagórica é parte de uma condição chamada síndrome do membro fantasma, que consiste em sensações de dor, movimento, ou outras sensações vindas de um membro amputado [6]. Imagine o quão horripilante deve ser!

Apesar de a síndrome do membro fantasma ser conhecida desde o século XVI, só nos anos de 1990 é que os sintomas foram atribuídos a neuroplasticidade – de uma forma maladaptativa (prejudicial).

Há uma parte do cérebro, chamada de córtex somatossensorial (CSS), que é responsável por interpretar o mundo através do sentido de tato. “Essa superfície é lisa?” e “o chão está frio?” são questões respondidas pelo CSS. O CSS também é responsável por algo chamado propriocepção. Antes de nós explicarmos o que essa palavra significa, faça o seguinte experimento: feche seus olhos e tente tocar a ponta de seu nariz com a ponta de seu dedo indicador. Você conseguiu? Se sim, você deveria estar impressionado pelo seu superpoder: você pode fazer isso sem sequer ver o movimento! Isso é propriocepção – nós sabemos as posições de nossos corpos e suas partes, mesmo com os olhos fechados.

Então, o que ocorre quando alguém perde um membro por amputação? A região responsável por ele no CSS para de funcionar? Geralmente, uma área do cérebro só diminui sua função, mas algumas vezes as coisas dão errado, e a área do cérebro responsável pelo membro faltante se torna hiperativa. Como ela pode estar hiperativa se o membro não está lá?

Em casos de amputação de perna, a neuroplasticidade permite que áreas próximas no CSS, como aquelas responsáveis pela coxa, tomem controle sobre a área do restante da perna que foi perdido. Uma possível explicação é que a atividade dos neurônios na área da coxa “descobrem” que uma região próxima da perna está inativa e estende algumas de suas fibras, conectando-se com neurônios inativos. A Figura 1 é um exemplo de pesquisa conduzida em nosso laboratório com amputados. Nós descobrimos que não só a representação de áreas dos membros intactos ou faltantes são alteradas, mas também que a mielinização de algumas partes do cérebro foi reduzida.

neuroplasticidade
Figura 1 – Neuroplasticidade em uma amputada da perna esquerda
A garota que teve sua perna esquerda amputada foi gentilmente estimulada com um pincel em três lugares: (1) no coto da perna amputada; (2) na mesma região da perna intacta; (3) no pé intacto. Os lugares coloridos nas imagens  do cérebro indicam quais regiões estavam mais ativas quando o pincel tocou a pele dela. Em (1) você pode ver que a estimulação do coto produz uma área de ativação maior do que quando o pincel toca a coxa da perna intacta (2). Além disso, a estimulação do coto parece ativar áreas similares daquelas de quando se estimula o pé (3), mas as áreas são menores. Note que as partes do lado esquerdo do corpo são representadas no lado direito do cérebro, e vice-versa. S1, área somatosensorial; M1, área motora; M2, área motora suplementar. Imagem: adaptada de Guimarães, D. e colaboradores (2020).

Então, neurônios da coxa crescem e conectam-se com neurônios da área da perna perdida – como pode essa neuroplasticidade se traduzir em uma sensação fantasma? Imagine que você possa sentir cada dobra de suas roupas que toque seus membros, mas mesmo quando você está de roupa de banho, você ainda pode sentir que seus membros estão aí, somente por movê-los. Isso significa que a área dos membros de seu cérebro está constantemente sendo ativada. Mas no caso da amputação, quando os neurônios da coxa e da parte de baixo da perna se conectam, ambos são ativados quando há alguma coisa estimulando a pele da coxa. Então, um toque na coxa dispara uma sensação de toque na perna perdida. A sensação proprioceptiva na coxa causada pelo movimento pode, também, disparar a sensação proprioceptiva na perna perdida.

Em outras palavras, o cérebro (ou pelo menos o CSS) entende errado a experiência sensorial, acreditando que o membro faltante ainda está ali.

CONCLUSÃO

Nós discutimos dois casos de neuroplasticidade: um bom e um prejudicial. Nós aprendemos que, cedo em nossas vidas, existem janelas temporais durante as quais a neuroplasticidade e o desenvolvimento de algumas áreas do cérebro são muito importantes. Este é o caso da mielinização do CPFm, que é muito dependente das nossas experiências sociais. Como um exemplo de neuroplasticidade prejudicial, nós aprendemos que, no evento de uma amputação, o cérebro pode não perceber que o membro se foi. Isso significa que partes do cérebro que eram responsáveis por interpretar sinais vindos do membro (por exemplo, a sensação de toque) podem continuar ativos, levando a síndrome do membro fantasma. Em geral, com esses dois exemplos, você  pode ver que o cérebro não é estático, ele está constantemente respondendo a desafios. Cada peça de informação que nós aprendemos ou cada pessoa que conhecemos pode levar a efeitos duradouros em nossos cérebros e em nossas vidas.

 

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram que a pesquisa foi conduzida na ausência de qualquer relação comercial ou financeira que possa ser interpretada como potencial conflito de interesses.

AGRADECIMENTOS

Nós agradecemos pelas imagens reais de cérebros humanos em nossa figura, providenciadas pelo nosso colega Theo Marins.

 

Tradução:

Fernando F. Mecca  sobre o tradutor           

Fernando F. Mecca é biólogo, professor e cientista. Mestre e doutorando em Neurociências, estuda os efeitos da depressão e antidepressivos sobre funções elétricas do cérebro. Também se interessa em educação e divulgação científica.

Artigo Original:

Guimarães D, Valério-Gomes B and Lent R (2020) Neuroplasticity: The Brain Changes Over Time!. Front. Young Minds. 8:522413. doi: 10.3389/frym.2020.522413

Fontes:

[1] Goh, J. O., and Park, D. C. 2009. Neuroplasticity and cognitive aging: the scaffolding theory of aging and cognition. Restor. Neurol. Neurosci. 27:391–403. doi: 10.3233/RNN-2009-0493
[2] Gutchess, A. 2014. Plasticity of the aging brain: new directions in cognitive neuroscience. Science 346:579–82. doi: 10.1126/science.1254604
[3] Brown, A., and Weaver, L. C. 2012. The dark side of neuroplasticity. Exp. Neurol. 235:133–41. doi: 10.1016/j.expneurol.2011.11.004
[4] Fuhrmann, D., Knoll, L. J., and Blakemore, S. J. 2015. Adolescence as a sensitive period of brain development. Trends Cogn. Sci. 19:558–66. doi: 10.1016/j.tics.2015.07.008
[5] Makinodan, M., Rosen, K. M., Ito, S., and Corfas, G. 2012. A critical period for social experience-dependent oligodendrocyte maturation and myelination. Science 337:1357–60. doi: 10.1126/science.1220845
[6] Simões, E. L., Bramati, I., Rodrigues, E., Franzoi, A., Moll, J., Lent, R., et al. 2012. Functional expansion of sensorimotor representation and structural reorganization of callosal connections in lower limb amputees. J. Neurosci. 32:3211–20. doi: 10.1523/JNEUROSCI.4592-11.2012.

(Editoração: Loren Pereira)

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