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Lipídios na Saúde e na Doença: Além da Gordura

#Mapa da Ciência (Pessoas por trás das descobertas científicas)

Como essas biomoléculas estão relacionadas a processos biológicos e doenças?

DESTAQUES:
• Lipídios estão diretamente envolvidos com a inflamação, tendo papel importantíssimo nesse processo.
• Também constituem as vesículas extracelulares, partículas fundamentais na comunicação entre células;
• Além disso, lipídios participam de diversos processos em nosso corpo, tanto fisiológicos quanto patológicos;
• Nosso grupo faz uma pesquisa integrativa avaliando o papel de fatores que modulam lipídios em diversas condições e tecidos, a fim de buscar melhores terapias para doenças relacionadas com essas moléculas.

Os lipídios são compostos orgânicos fundamentais para a vida, desempenhando uma variedade de funções essenciais, e são divididos em classes, como triglicerídeos (nossos estoques de energia), fosfolipídios (componentes estruturais de membranas celulares) e esteróis (principalmente colesterol e hormônios). A investigação progressiva dessas moléculas, em condições fisiológicas e patológicas é essencial para aprofundar nosso entendimento sobre como diferentes tipos de lipídios impactam o corpo e como podemos utilizar esse conhecimento para promover uma vida mais saudável e desenvolvimento de novos fármacos.

Como os lipídios são muito diversos, alguns métodos específicos de análise em laboratórios são necessários para garantir sua identificação e quantificação com qualidade em diversas amostras biológicas. Pensando nisso, o Prof. Dr. Carlos Artério Sorgi, da FFCLRP e FMRP /USP, definiu um método analítico para detectar um grupo de lipídios com capacidade de mediar processos imunológicos, chamados eicosanoides, por meio do uso de espectrômetro de massa acoplado ao cromatógrafo líquido de alta eficiência, um equipamento que tem função como uma “balança molecular” para moléculas muito pequenas .

Os mediadores lipídicos (como as prostaglandinas, leucotrienos, lipoxinas, resolvinas etc) são lipídios pequenos derivados de ácidos graxos tipo ômega-3 ou ômega-6, processados nas células e tecidos a partir de algumas enzimas como as cicloxigenases (COX) e as lipoxigenases (LOX). Esses mediadores lipídicos desempenham papel importante no controle da inflamação e da dor no nosso organismo, tanto que a maioria dos remédios antiinflamatórios comercializados são inibidores das COX, como o ibuprofeno, ácido acetilsalicílico (AAS), diclofenaco, celecoxibe etc.

Algumas condições específicas podem levar a uma maior ou menor produção dessas moléculas lipídicas, como por exemplo em uma infecção viral. Isso foi observado durante a pandemia da COVID-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2: nosso grupo de pesquisa, em colaboração com a Profa. Dra. Lúcia Faccioli (FCFRP), evidenciou alta produção de prostaglandina E2 (PGE2), tromboxano B2 (TXB2) e ácido araquidônico (AA, precursor de vários dos eicosanoides) em amostras de aspirado traqueal de pacientes graves de COVID-19 . Esse aumento, especialmente da PGE2, é responsável por amplificar a produção de algumas proteínas relacionadas à inflamação, que por sua vez induzem a produção de mais mediadores inflamatórios, levando a uma hiperinflamação, o que causa maiores danos pulmonares e piores condições para o paciente, alcançando maiores gravidades e, em alguns casos, óbito. 

lipídeos
Figura 1. COVID-19 afeta o metabolismo de lipídios inflamatórios. Análise de amostras de sangue e aspirado pulmonar de pacientes com COVID-19 revela mudanças nas produções de genes e lipídios inflamatórios. Imagem: Pérez et al., 2022.

No entanto, na COVID-19 outros lipídios participaram da resposta do paciente contra o vírus. Por exemplo, observou-se o aumento de produção de endocanabinoides em pacientes graves de COVID-19. Os endocanabinoides são lipídios derivados principalmente do ácido araquidônico (assim como os eicosanoides, porém através de enzimas diferentes), e têm funções neurológicas e anti-inflamatórias. Assim, se esperava que sua produção diminuísse em pacientes graves de COVID-19, ao contrário do observado. Após análises extensas, foi demonstrado que essa produção estava relacionada ao uso de corticoides (uma das principais opções de tratamento para a doença em pacientes graves, por causa de sua ação imunossupressora). Esse efeito secundário dos corticoides foi descrito pela primeira vez pelo nosso grupo de pesquisa, e foi destacado pela Agência FAPESP.

 

Ainda relacionado à COVID-19, outro estudo do nosso grupo revelou alterações significativas das quantidades de esfingolipídios, outro tipo de lipídios que, em geral, estão distribuídos em partículas e células presentes no sangue, em pacientes com COVID-19 grave. A pesquisa demonstrou que a progressão da doença para um estado mais grave estava associada ao desequilíbrio na proporção entre esfingomielinas e ceramidas, que são espécies de esfingolipidios. Especificamente, observou-se um aumento nas quantidades de ceramida, que tem caráter pró-inflamatório e pró-apoptótico (induz a morte celular), e uma diminuição na produção de esfingomielina, um lipídio com funções estruturais e de sinalização celular.

Essa alteração na proporção entre esses dois esfingolipídios sugere um papel crucial destes compostos na resposta inflamatória exacerbada e na disfunção celular observadas em pacientes graves com COVID-19. Esses achados destacam a importância das análises em laboratórios de pesquisa de vários lipídios específicos (lipidômica),  sendo uma ferramenta promissora para entender os mecanismos de doenças e identificar potenciais biomarcadores para prever a gravidade e orientar o tratamento da COVID-19, assim como outras doenças inflamatórias ou de infecções. Com esses exemplos, podemos observar como a diversidade lipídica tem muitas funções além de apenas “reservatórios de energia”, presentes em várias funções e condições biológicas.

Figura 3. Variações em esfingolipídios estão relacionadas a diferentes perfis de resposta contra a COVID-19. No plasma foi observado, por meio de análise de biomoléculas (espectrometria de massas), um aumento nas quantidades de ceramidas em pacientes graves de COVID-19, e elevação em esfingomielinas em pacientes leves, indicando uma divergência desse grupo de lipídios na progressão e desfecho da doença. Imagem: Toro, D. et al., 2023.

Outro tópico em evidência em que se relaciona com os lipídios em estudos do nosso grupo de pesquisa (GEBIL- Grupo de estudos em Biotecnologia e Imunoquímica de Lipídios) são as Vesículas Extracelulares (VEs). Elas são minúsculas partículas liberadas pelas células que carregam consigo uma grande riqueza de informações moleculares: proteínas, material genético e outros lipídios. Elas são “cápsulas” com uma membrana lipídica, podendo ser geradas do interior da célula ou brotar diretamente da membrana celular. Além disso, podem carregar conteúdos lipídicos ou proteínas que afetem o metabolismo ou função de uma ou mais células vizinhas.

A nossa equipe investiga o papel dessas vesículas como mensageiras na comunicação entre células, desvendando como elas influenciam processos fisiológicos e patológicos, desde o desenvolvimento de órgãos até a progressão de doenças como na COVID-19, gripe, câncer ou doenças do fígado relacionadas ao acúmulo de gordura. O potencial dessas vesículas como biomarcadores para diagnósticos personalizados, além de monitorar a resposta a tratamentos, é uma das fronteiras exploradas pelo nosso grupo de pesquisa. Dessa forma, temos o objetivo de aprimorar uma medicina de precisão e oferecer novas ferramentas para a saúde da população.

Dentre os inúmeros papéis que VEs e lipídios desempenham, estamos investigando como a exposição à radiação ionizante é capaz de alterar a composição de lipídios de osteoblastos (células responsáveis pelo desenvolvimento do osso). Este trabalho ocorre em colaboração com laboratórios do Departamento de Química da FFCLRP, sob a liderança do Prof. Dr. Pietro Ciancaglini e da Profª. Ana Paula Ramos, além de uma parceria internacional com pesquisador da NASA, Prof. Dr. Afshin Beheshti.

Neste estudo, buscamos compreender a influência da radiação ionizante nos lipídios presentes nas membranas celulares, avaliar a capacidade do corpo de se recuperar de possíveis danos a esses lipídios e investigar se a radiação no espaço pode estar relacionada ao aparecimento de osteoporose em astronautas após missões espaciais. Para isso, estamos atualmente realizando experimentos com células em laboratório que reproduzem as condições de radiações espaciais. Então, por meio das técnicas de lipidômica, observamos as modificações nos lipídios. Este estudo abre caminho para futuras pesquisas em seres humanos, ampliando nossa compreensão dos efeitos da radiação e suas implicações na saúde humana e nas missões espaciais. 

Figura 4. Modelo de estudos de Vesículas Extracelulares de osteoblastos expostos à radiação ionizante. Osteoblastos serão irradiados com raios gama e analisados pelo conteúdo lipídico, determinando se a radiação é capaz de alterar composição lipídica de membranas celulares. Imagem: arquivo pessoal.

Dessa forma, demonstramos que os lipídios têm diversas funções em processos biológicos, porém não devemos esquecer de seu papel clássico de armazenamento de energia no organismo ao se depositarem no tecido adiposo. Entretanto, em determinadas condições essa estocagem pode ser prejudicada devido a diversos fatores, como dieta, sedentarismo e outros aspectos metabólicos e genéticos. O principal órgão responsável pelo gerenciamento de gordura (lipídios) no corpo humano é o fígado, conhecido como o órgão metabólico, e nesse contexto temos a Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica (NAFLD, do inglês Non-Alcoholic Fatty Liver Disease), que se caracteriza por um acúmulo de gorduras no tecido hepático. 

Essa condição de doença proporciona danos, desde a má função do fígado até a inflamação sistêmica que pode se agravar para cirrose e até mesmo para câncer, que levam ao óbito do indivíduo. Portanto é muito importante entender os motivos moleculares envolvidos com os distúrbios metabólicos do fígado, visto o aumento da incidência de NAFLD nos últimos anos. Sugerimos que os lipídios estão envolvidos fortemente neste processo de doença, não apenas os triacilgliceróis (armazenamento), mas como também os eicosanoides, os fosfolipídios, esfingolipidios e colesterol (estruturais, responsáveis por formar a membrana de lipoproteínas em partículas que carregam gordura no sangue).

Investigamos no GeBIL esses mecanismos de doença de fígado em humanos e em modelos experimentais com camundongos, que são submetidos a uma dieta hiperlipídica (rica em gorduras), fazendo a caracterização do fígado e sangue desses animais. Este estudo é atualmente financiado pela FAPESP. Como demonstrado anteriormente, os lipídios interagem com inúmeras proteínas, podendo até regular a função e atividade delas. Dentre essas proteínas,  estudamos as Metaloproteinases de Matriz (MMPs, do inglês Matrix Metalloproteinases), que atuam principalmente como fatores de degradação de outras proteínas presentes, por exemplo, na matriz extracelular (“rede” que permeia as células nos tecidos, garantindo sua estrutura e função, e rica em fibras como colágeno).

Essas MMPs também estão fortemente relacionadas a processos inflamatórios, como já demonstramos na COVID-19 (https://agencia.fapesp.br/pesquisa-revela-mecanismo-ligado-ao-agravamento-da-covid-19-nos-pulmoes-e-abre-caminho-para-tratamento/38455) e atualmente,  estudamos a interação dessas proteínas com as lipoproteínas do sangue responsáveis por transportar os lipídios para o tecido adiposo, e com o desenvolvimento e progressão das doenças do fígado e seus efeitos na regulação do processo inflamatório.

Figura 5. Modelo de dieta hipercalórica para analisar variações de lipídios em doenças do fígado. A dieta hipercalórica causa distúrbios metabólicos nos camundongos, que são acometidos pelo acúmulo de gorduras no fígado, levando a uma condição caracterizada como Doença Hepática Gordurosa Não Hepática (DHGNA). Por meio das análises de lipídios, será realizada a caracterização dos fígados doentes e saudáveis, além de verificar o sangue e partículas circulantes (lipoproteínas e vesículas extracelulares) para compreender como é modulado o depósito e o transporte de gordura nestes animais experimentais. Imagem: arquivo pessoal.

 

Colaboração:

Dr. Carlos Artério Sorgi sobre o autor

Professor e cientista na área de Bioquímica. Líder do GeBIL- Grupo de estudos em Biotecnologia e Imunoquímica de Lipídios, coordenador dos consórcios de pesquisa “ImunoCovid” e “AerobiCOVID” do campus USP- Ribeirão Preto. Possui Graduação em Química (Bacharelado, licenciatura e atribuições biotecnológicas), Doutorado em Bioquímica, e Pós-doutorado em Farmacologia Bioquímica e Molecular. Ênfase de pesquisas em Infecções Virais e processos do metabolismo de lipídios. Atua em projetos com parcerias na Clínica Médica e Odontológica.

 

MSc. Pedro Nobre Azevedo sobre o autor

Mestre e aluno de Doutorado em Bioquímica. É formado em Tecnologia em Processos Químicos. Atualmente trabalha na avaliação do papel de enzimas na regulação do metabolismo lipídico em doenças do fígado. Possui experiência em experimentos de análise de biomoléculas e Bioinformática.

 

Referências:

Artigo científico intitulado “Acetylcholine, Fatty Acids, and Lipid Mediators Are Linked to COVID-19 Severity”, publicado na revista The Journal of Immunology em 2022, de autoria de Pérez, M. M. e colaboradores. https://doi.org/10.4049/jimmunol.2200079

Artigo científico intitulado “Comprehensive high-resolution multiple-reaction monitoring mass spectrometry for targeted eicosanoid assays”, publicado na revista Scientific Data em 2018, de autoria de Sorgi. C. A. e colaboradores. https://doi.org/10.1038/sdata.2018.167

Artigo científico intitulado “Plasma Sphingomyelin Disturbances: Unveiling Its Dual Role as a Crucial Immunopathological Factor and a Severity Prognostic Biomarker in COVID-19”, publicado na revista Cells em 2023, de autoria de de Toro, D. M. e colaboradores. https://doi.org/10.3390/cells12151938 

Artigo científico intitulado “The Interplay among Glucocorticoid Therapy, Platelet-Activating Factor and Endocannabinoid Release Influences the Inflammatory Response to COVID-19”, publicado na revista Viruses em 2023, de autoria de de Carvalho, J. C. S. e colaboradores. https://doi.org/10.3390/v15020573

Matéria no site Agência FAPESP intitulada “Estudo revela novo mecanismo de ação dos corticoides no combate à inflamação causada pela COVID-19” publicada em 14/03/2023. https://agencia.fapesp.br/estudo-revela-novo-mecanismo-de-acao-dos-corticoides-no-combate-a-inflamacao-causada-pela-covid-19/40882

Matéria no site Agência FAPESP intitulada “Pesquisa revela mecanismo ligado ao agravamento da COVID-19 nos pulmões e abre caminho para tratamento” publicada em 26/04/2022. https://agencia.fapesp.br/pesquisa-revela-mecanismo-ligado-ao-agravamento-da-covid-19-nos-pulmoes-e-abre-caminho-para-tratamento/38455

 

(Editoração: Fernando F. Mecca e Nathália A. Khaled)

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