Image default

Como os crocodilos extintos Baurusuchidae se tornaram grandes carnívoros?

Evidências da ação de processos heterocrônicos na evolução craniana de crocodiliformes extintos

 

Resumo

A evolução da forma biológica pode se dar por diversos processos, entre eles os chamados processos heterocrônicos, que são modificações na sequência ou taxas de desenvolvimento que resultam em estruturas diferenciadas em relação aos ancestrais. O achado de um crocodiliforme fóssil considerado um indivíduo juvenil de uma espécie conhecida, incitou a investigação da presença destes processos na evolução do grupo. Neste trabalho, por meio de análises de morfometria geométrica, testou-se a presença de heterocronia nestes animais e qual tipo de processo específico teria atuado neste caso. Os resultados dessas análises suportam a ação destes processos que geraram animais maiores, com morfologia craniana mais pronunciada, incluindo grandes dentes, características que estariam associadas ao hábito hipercarnívoro destes crocodiliformes.

 

Introdução

Processos heterocrônicos são processos evolutivos, que resultam em alterações no tamanho ou forma das estruturas biológicas de espécies por meio de modificações do momento de ocorrência ou das taxas de desenvolvimento de eventos ontogenéticos. Tais diferenças em tamanho ou forma são mais explicitamente percebidas quando comparamos formas e tamanho de descendentes com seus ancestrais. Processos heterocrônicos são divididos em dois tipos básicos: pedomorfose e peramorfose. No primeiro, os adultos da espécie descendente “se parecem” com juvenis da espécie ancestral (no formato geral ou em relação a alguma estrutura específica). Já com a peramorfose, temos o contrário, os juvenis da espécie descendente já se assemelham aos adultos do ancestral antes de atingirem a maturidade sexual. Heterocronia é um processo complexo, difícil de ser compreendido e explicado. Talvez a melhor maneira de explanar seja com exemplos. O caso clássico de pedomorfose é o da salamandra axolotle (Ambystoma mexicanum), cujos indivíduos ainda retém características de juvenis quando atingem a maturidade sexual (ou seja, se tornam adultos). Esses indivíduos adultos ainda se parecem com juvenis, pois ainda possuem as brânquias externas e a cauda em formato de “remo”, que estão presentes somente em juvenis de outras espécies (Figura 1). Já peramorfose não possui um exemplo tão clássico, mas podemos dizer que a maioria das estruturas exacerbadas de muitos animais foi originada por esse processo, como dentes enormes, chifres gigantes, ou garras aparentemente desproporcionais.

Figura 1: Axolotle adulto, representando um exemplo de pedomorfose, já que retém características de juvenis de outras espécies de salamandra. Imagem: Wikimedia Commons

E foi tendo esses processos em mente que nos deparamos com uma situação muito interessante, um achado paleontológico que motivou este trabalho. Mas para chegar até lá, primeiro temos que conhecer nosso objeto de estudo, o grupo de crocodiliformes extintos chamado Notosuchia. Notosuchia inclui espécies que viveram durante o Cretáceo, no supercontinente Gondwana. É um grupo interessantíssimo por exibir uma diversidade impressionante, tanto em número de espécies (mais de 70 espécies descritas) quanto em nichos ecológicos ocupados. A maioria das espécies de Notosuchia era completamente terrestre. Alguns tinham apenas alguns centímetros de comprimento, outros chegavam a quase 4 metros. Alguns possuíam dentição diferenciada, sugerindo onivoria ou até herbivoria em alguns casos, enquanto outros eram carnívoros, tinham dentes parecidos com de dinossauros terópodos (ou seja, carnívoros, como o T. rex), com caninos enormes, e estavam no topo da cadeia alimentar em seus ecossistemas. Estes hipercarnívoros são incluídos em um subgrupo chamado Baurusuchidae, cujos membros são todos encontrados na América do Sul (principalmente no Brasil).

Voltando ao achado que motivou este trabalho, em 2009 um novo fóssil encontrado pela equipe do Laboratório de Paleontologia de Ribeirão Preto (FFCLRP/USP), revelou-se um indivíduo juvenil da espécie Pissarrachampsa sera, que pertence ao grupo dos Baurusuchidae (os Notosuchia hipercarnívoros). Apesar de este indivíduo possuir características que permitem associá-lo à espécie Pissarrachampsa sera, por ser um juvenil ele também possui características distintas dos adultos dessa espécie. De fato, o formato geral do crânio desse indivíduo se parece muito com o de adultos de outras espécies de Notosuchia, como as várias espécies do gênero Araripesuchus (Figura 2). Tal peculiaridade nos fez investigar a presença de processos heterocrônicos envolvidos na evolução desses crocodiliformes, particularmente peramorfose, uma vez que um juvenil de Baurusuchidae “se parece” com adultos de outros Notosuchia. E para fazer isso nós investigamos as diferenças e mudanças do formato do crânio de várias espécies de Notosuchia, usando técnicas de morfometria geométrica.

Figura 2: À esquerda, o espécime juvenil de Pissarrachampsa sera. À direita, espécime adulto de Araripesuchus wegeneri. As semelhanças gerais entre um juvenil de uma espécie e um adulto de outra apontam para a presença de peramorfose na evolução do grupo. Imagem: Godoy et al.2018).

 

Material & Métodos 

As técnicas de morfometria geométrica usam marcos anatômicos (pontos geralmente homólogos) digitalizados em superfícies (2D ou 3D) de alguma estrutura de diferentes indivíduos para, de maneira quantitativa e mais objetiva, permitir a comparação de diferentes formas. Neste caso, usamos crânios de 38 espécimes de Notosuchia, tanto em vista dorsal como em vista lateral (em 2D), para avaliar se as diferenças entre os crânios poderiam ser explicadas pela ação de processos heterocrônicos. Para isso, a inclusão de indivíduos juvenis era essencial. Além do fóssil que motivou este trabalho (o indivíduo juvenil de Pissarrachampsa), outros 3 espécimes juvenis foram incluídos (sendo mais um Baurusuchidae e outros 2 de outros subgrupos de Notosuchia).

As análises de morfometria geométrica foram divididas em 3 etapas. A primeira, que visou buscar evidências para a presença de peramorfose na evolução do crânio desses animais, foi a mais simples delas. Usando um protocolo comum neste tipo de análise, nós criamos um gráfico chamado de morfoespaço (Figura 3), ou seja, um gráfico cujos eixos X e Y representam as variações mais importantes no formato dos crânios dos animais estudados e cada ponto representa um indivíduo/espécime. Os elementos do crânio com maior variação são calculados a partir de análises de componentes principais. Como tratamos juvenis e adultos separadamente, foi possível identificar mudanças no crânio de espécies durante o desenvolvimento ontogenético. Neste caso, estávamos interessados nas mudanças no crânio durante o desenvolvimento de espécies de Baurusuchidae (representadas principalmente por Pissarrachampsa, já que possuíamos indivíduos adultos e juvenis desta espécie).

Figura 3: Gráfico de morfoespaço gerado na primeira etapa das análises, usando a vista lateral dos crânios. Cada ponto representa um indivíduo. Os polígonos coloridos representam os diferentes grupos de Notosuchia analisados (Baurusuchidae em azul). Indivíduos juvenis são indicados com sinais de positivo (+). É importante notar como o espécime juvenil de Pissarrachampsa (sinal positivo azul, no lado direito do gráfico) está distante do polígono azul, destinado aos Baurusuchidae adultos (incluindo o indivíduo de Pissarrachampsa adulto). Imagem: Godoy et al., 2018)

A segunda etapa visou definir se as mudanças no formato do crânio estavam associadas a mudanças no tamanho total. Isso nos daria pistas sobre o subtipo de peramorfose presente (são três subtipos: hipermorfose, pré-deslocamento e aceleração). Destes 3 tipos, aceleração é o único em que formato e tamanho não estão nunca diretamente associados. Portanto, a partir de resíduos de uma regressão linear, pudemos realizar uma segunda rodada de análises de componentes principais e gerar um morfoespaço “livre” das influências do tamanho (em outras palavras, realizamos uma correção alométrica). Finalmente, a terceira etapa visou refinar ainda mais a investigação sobre os subtipos de peramorfose presente. Para isso, adaptamos um protocolo recentemente publicado em um estudo de formatos de flores associados à polinização para realizar uma correção alométrica da ontogenia ancestral. Em poucas palavras, nós reconstruímos a trajetória ontogenética ancestral usando espécimes juvenis e adultos de espécies de Notosuchia que não são Baurusuchidae (ou seja, das duas espécies que possuíamos dados). Depois disso, com uma ideia semelhante à da correção alométrica, usamos uma regressão linear, seguida de novas análises de componentes principais. Com isso, nós poderíamos determinar se as mudanças de forma/tamanho vistas em Baurusuchidae seguem as mesmas proporções das mudanças durante o desenvolvimento ontogenético de um ancestral hipotético. Isso é importante porque, dentre os 3 subtipos, somente em hipermorfose as mudanças seguem a trajetória ontogenética ancestral.

 

Resultados & Discussão

Os resultados da primeira etapa de análises mostraram que, durante o desenvolvimento ontogenético de Pissarrachampsa, existe uma mudança na posição do morfoespaço ocupado (Figura 3). Mais especificamente, quando jovem, Pissarrachampsa se encontra numa posição mais próxima de outros Notosuchia, e se distancia destes conforme cresce e se desenvolve. Ou seja, esta primeira etapa nos deu evidências fortes de que peramorfose estaria presente na evolução cranial destes crocodiliformes.

Para a segunda etapa, os resultados mostram que, depois da correção alométrica, as diferenças vistas no morfoespaço da primeira etapa desaparecem. Isto significa que alterações no tamanho estavam causando grande parte daquelas mudanças. Então, com tais resultados, podemos afirmar que existe uma associação entre forma e tamanho na evolução do crânio de Baurusuchidae e Notosuchia. Portanto, nós descartamos a ação do subtipo aceleração como processo isolado neste caso. A terceira etapa nos mostrou resultados um pouco conflitantes. Enquanto as análises em vista lateral apontam que a trajetória ontogenética ancestral é mantida, os resultados com a vista dorsal dos crânios mostram o oposto. Deste modo, não podemos afirmar de maneira confiante que o subtipo hipermorfose estaria agindo de maneira isolada neste caso.

O fato de descartarmos a ação isolada dos outros dois subtipos de peramorfose não confere, automaticamente, a autoria das mudanças morfológicas observadas ao terceiro subtipo, pré-deslocamento. Isto por dois motivos. Primeiro porque, diferentemente dos outros dois subtipos, nós não testamos de maneira objetiva e quantitativa a ação de pré-deslocamento (com análises). E não o fizemos porque a presença de pré-deslocamento depende de informações sobre o momento do início e fim do desenvolvimento das estruturas estudadas, informações estas que não estão normalmente presentes no caso de fósseis (no entanto, poderiam ser testadas no futuro com informações obtidas a partir de análises histológicas). O segundo motivo é que a ação de mais de um subtipo de peramorfose pode ocorrer simultaneamente. Portanto, apesar de termos descartado as ações isoladas de aceleração e hipermorfose, estes dois subtipos ainda poderiam ocorrer em conjunto com outros.

Estes resultados são importantes pois, apesar de não nos indicar claramente o subtipo, nos dá evidências fortes da ação de processos heterocrônicos (peramorfose) na evolução craniana dos Notosuchia. Este é um dos primeiros estudos a investigar heterocronia em crocodiliformes fósseis, o primeiro usando morfometria geométrica. Além disso, ao identificarmos que mudanças no formato do crânio estão associadas a mudanças de tamanho em Baurusuchidae, nós provavelmente estamos caracterizando um importante passo evolutivo na história deste grupo. Isto porque a maioria das espécies Baurusuchidae eram grandes, maiores que grande parte dos outros Notosuchia e animais que viviam em seus ambientes. Portanto, seu grande porte, combinado com as mudanças no crânio (e dentição), foram importantes para o estabelecimento destes animais como predadores de topo da cadeia alimentar. Deste modo, temos evidências que sugerem fortemente que os processos heterocrônicos (peramorfose) foram fundamentais para a evolução destes crocodiliformes hipercarnívoros do Cretáceo da América do Sul.

 

Pesquisa ao seu alcance: Pedro Godoy

sobre o autor

Artigo original

O texto apresentado é uma adaptação do artigo “Evidence for heterochrony in the cranial evolution of fossil crocodyliforms”, publicado pela revista Palaeontology em 08 de março de 2018, de autoria de P. Godoy, G. Ferreira, F. Montefeltro, e colaboradores. O artigo original pode ser acessado em https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/pala.12354.

(Editoração: Fernando Mecca, Gabriel Ferreira, Gabriela Duarte e Caio Oliveira) 

Postagens populares

Emulsões podem substituir corantes artificiais em bebidas

IDC

“Eu acho que vi um gatinho!”

IDC

Como se relacionam os índices de fracasso escolar, racismo e encarceramento?

IDC

O que os estudantes brasileiros pensam sobre o oceano?

IDC

Crenças e atitudes sobre tubarões e as implicações para sua conservação

IDC

A importância da fermentação na civilização humana

IDC