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Raios X de fósseis bem preservados revelam detalhes da anatomia de besouro extinto

Preservação tridimensional de fósseis enriquece inferências evolutivas

 

Resumo

Os fósseis mais raros, e muitas vezes mais apreciados por paleontólogos, são aqueles em que a sua forma tridimensional original é preservada, auxiliando na identificação da espécie, bem como na sua relação de parentesco com as espécies viventes. Mesmo assim, até mesmo os fósseis mais bem conservados externamente podem não possuir estruturas internas de interesse fossilizadas, o que normalmente ocorre com artrópodes cujo corpo é relativamente mais frágil do que de um vertebrado, por exemplo. Nesse contexto, fósseis mineralizados são muito úteis para os pesquisadores por auxiliar na preservação da anatomia interna de organismos, enriquecendo nosso conhecimento sobre eles. Neste estudo, foram utilizadas técnicas não-invasivas para o estudo de um besouro fóssil com o objetivo de esclarecer suas relações com as demais espécies de seu grupo. Com os novos dados, rejeita-se uma hipótese prévia de que ele seria mais proximamente relacionado a uma espécie vivente da Europa, sendo, na verdade, mais próximo a espécies da América do Norte.

 

Introdução

A morfologia de um organismo é o resultado de respostas a diferentes desafios ecológicos e ambientais que seus ancestrais enfrentaram ao longo de sua história evolutiva. Para entender de forma mais completa a história dessa linhagem, é sempre importante ter consciência da variedade de características morfológicas que foram estabelecidas a partir de processos como a seleção natural, por exemplo. Mesmo diante da importância de estruturas internas para o funcionamento de um organismo, a maioria de estudos sistemáticos ou ecomorfológicos dão maior ênfase às características externas. Em análises filogenéticas, por exemplo, há a inclusão de características tanto externas quanto internas; no entanto, aquelas que incluem fósseis limitam-se apenas a caracteres externos. Ainda assim, é sempre desafiador avaliar se a ausência de uma característica externa de um fóssil se deve a processos tafonômicos ou trata-se de uma real ausência, o que pode levar a interpretações equivocadas a respeito da evolução de traços anatômicos em um dado grupo.

No caso de artrópodes fósseis, alguns dos principais modos de fossilização são impressões ou inclusões em âmbar. Este último caso permite inclusive a preservação da estrutura de maneira tridimensional em excelente estado, incluindo tanto partes externas como internas. Além do âmbar concreções e fossilização em fosfato (caso deste estudo) também são importantes modos de preservação tridimensional, revelando detalhes da anatomia de olhos e fibras musculares, como estudos anteriores já reportaram. Uma maneira recorrente de se estudar esses fósseis sem danificá-los mecânica ou quimicamente é utilizando tomografia computadorizada, uma técnica não-invasiva que permite a observação de detalhes internos em fósseis e vem sendo aplicada no estudo de artrópodes fósseis, principalmente aqueles preservados em âmbar.

Este estudo trata de um exemplar fóssil preservado em fosfato oriundo de afloramentos da França, o besouro Onthophilus intermedius. À época de sua descoberta, o cientista suíço Eduard Handschin (responsável pela descrição da espécie) propôs que esse besouro fóssil seria mais aparentado com uma espécie vivente do mesmo gênero que ocorria também na Europa, O. striatus (Figura 1). Esses besouros pertencem ao grupo Histeridae, popularmente conhecidos como “besouros-palhaço” (em livre tradução do inglês clown-beetles), provavelmente pelas suas pernas achatadas, que lembrariam as calças folgadas de palhaços; além disso, são comumente utilizados em estudos forenses. Assim, utilizando a técnica de tomografia computadorizada, pesquisadores investigaram as anatomias interna e externa dos fósseis de O. intermedius e as compararam com as de outros membros de seu grupo. Com isso, puderam testar a hipótese de parentesco com O. striatus previamente proposta por Handschin.

Figura 1: Besouro da espécie Onthophilus striatus. Imagem: Stanislav Krejčík (BioLib.cz).

 

Material & Métodos 

Para a realização deste estudo, os autores realizaram a tomografia computadorizada de oito espécimes do besouro extinto Onthophilus intermedius. Com o intuito de se ter uma base de comparação morfológica direta, uma tomografia foi realizada para espécimes de O. striatus. As imagens geradas a partir das tomografias foram então carregadas em programas específicos de reconstrução tridimensional. Nesses programas, para cada “corte” você pode utilizar ferramentas de preenchimento para dar destaque àquelas áreas de seu maior interesse, como as antenas ou pernas dos insetos, ou mesmo regiões internas (traqueia, por exemplo). A partir de vários preenchimentos em sequência, o programa possibilita a geração de um modelo tridimensional (Figura 2), e permite que seja manipulado nos mais diversos ângulos.

Figura 2: Reconstrução digital do fóssil. A) Fotografia de um espécime de Onthophilus intermedius envolvido por rocha. B) Reconstrução mostrando o besouro (em verde) e a rocha (marrom). C) Besouro isolado digitalmente da rocha. D) Vista interna do besouro mostrando sistema de traqueias, genitália e partes da anatomia externa. E) Comparação da genitália masculina do besouro vivente O. striatus com a genitália de (F) O. intermedius. Imagem: modificado de Schwermann et al. (2016).

Com base nos novos dados, os autores fizeram uma análise filogenética. Além dessas informações obtidas por meio das imagens de tomografia, os pesquisadores também recorreram à observação direta de exemplares de outras espécies e à literatura em que estavam descritos e ilustrados alguns táxons.

 

Resultados & Discussão

Os pesquisadores puderam encontrar estruturas internas em todos os espécimes fósseis que foram analisados. Interessantemente, em três deles havia a presença de órgãos genitais, permitindo sua identificação como dois machos e uma fêmea. Além disso, a superfície externa do exoesqueleto dos fósseis era lisa, diferente da superfície mais rugosa vista nas espécies viventes do gênero Onthophilus. A enorme qualidade do estado de preservação dos fósseis facilitou uma descrição bastante detalhada de sua anatomia.

Como mencionado anteriormente, o autor da descrição original de Onthophilus intermedius propôs que essa espécie teria afinidades com a espécie vivente O. striatus, principalmente devido às suas semelhanças externas. No entanto, com a maior quantidade de características disponíveis agora para uma comparação, os resultados da análise filogenética mostram um cenário diferente. Ao contrário do que pensava o cientista suíço, O. intermedius e O. striatus estão posicionados em clados diferentes. Nas análises, O. intermedius está mais proximamente relacionado a espécies de Onthophilus que vivem na América do Norte, revelando uma história biogeográfica bem diferente a ser explorada (Figura 3). Mesmo não levando em conta as características internas das duas espécies, elas ainda diferem em pelo menos três aspectos externos de sua anatomia, corroborando uma relação mais distante entre elas do que foi hipotetizado antes.

Figura 3: Resumo gráfico do artigo, mostrando as diferentes etapas do trabalho. Imagem: modificado de Shwermann et al. (2016).

Os resultados demonstram que artrópodes fósseis preservados em condições como fosfato também podem reter informações a respeito de tecidos moles e anatomia interna em grande detalhe, como visto para o besouro Onthophilus intermedius. A reinterpretação de fósseis da mesma localidade pode ser uma importante fonte complementar de informações sobre a história evolutiva do grupo. Além disso, este estudo mostra que espécimes em condições de preservação similares de diferentes regiões, originalmente considerados de baixa qualidade, poderiam ser investigados novamente com o método aqui descrito, e se mostrar importantes para o entendimento da evolução de características externas e internas de outros grupos de organismos.

 

Pesquisa ao seu alcance: Guilherme Hermanson

sobre o autor

Artigo original

O texto apresentado é uma adaptação do artigo “Preservation of three-dimensional anatomy in phosphatized fossil arthropods enriches evolutionary inference”, publicado pela revista eLife em fevereiro de 2016, de autoria de A. Schwermann, T. Rolo, M. Caterino e colaboradores. O artigo original pode ser acessado em https://elifesciences.org/articles/12129.

(Editoração: Fernando Mecca, Priscila Rothier e Caio Oliveira) 

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