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Como reconstruir a aparência de animais extintos?

Ao ver um dinossauro em Jurassic Park, imagens de preguiças gigantes, ou outras reconstruções de animais pré-históricos, podemos não nos dar conta, mas há uma série de processos que levaram à determinação da postura, proporção de músculos, cor e as demais características representadas em suas reconstituições.

As informações que temos sobre animais extintos vêm basicamente do registro fóssil. A maioria dos fósseis têm sua origem da seguinte maneira: o animal morre e sofre um rápido soterramento, interrompendo a decomposição de seus restos mortais. A partir daí, conforme o tempo passa, a matéria orgânica mais resistente é substituída por minerais, o que promove a petrificação desses tecidos. O melhor cenário possível para o estudo de um fóssil é quando a amostra contém evidências diretas sobre as características do animal. Fósseis completos e bem preservados são raros, mas podem conter informações valiosas sobre a aparência e natureza dos animais estudados.

Borealopelta markmitchelli (Brown et al. 2017). Imagem: https://www.nationalgeographic.com

Um bom exemplo de caso raro é o fóssil de um anquilosaurídeo do gênero Borealopelta, encontrado em 2017, que manteve toda  sua parte superior frontal preservada em três dimensões. Isso só foi possível porque o animal caiu no mar logo após sua morte com as costas viradas para baixo, e o corpo atingiu o fundo com força suficiente para deformar o sedimento, causando seu soterramento parcial e posterior fossilização. Por meio de fósseis assim fica relativamente fácil identificar os contornos do animal, gerando uma reconstrução bem precisa de sua aparência física.

No entanto, a vasta maioria dos casos é composta por fósseis incompletos, que fornecem poucas informações sobre a aparência do animal. Para reconstruir fósseis encontrados nesse estado, é empregado um segundo método de análise, baseado na inferência de características a partir da filogenia da espécie em questão. O método mais comum para se fazer esse tipo de inferência é conhecido como phylogenetic bracketing, que se baseia na comparação entre táxons com características próximas. É razoável supor que sinapomorfias de um táxon mais abrangente estariam presentes no táxon menor estudado, sendo assim possível criar um “chute educado” de como seriam as partes faltantes do fóssil. No entanto, é necessário tomar cuidado com possíveis homoplasias, novas apomorfias e reversões evolutivas que podem ter ocorrido ao longo da história evolutiva causando a possível presença ou ausência “inesperada” de determinadas características no táxon em questão.

 

Esqueleto e musculatura

Os ossos formam um grande quebra-cabeças onde as partes são objetos complexos que têm formatos, tamanhos e pesos diferentes, e se ligam de formas que não podem ser vistas nos fósseis. O principal material do paleontólogo, cientista que estuda a vida no passado da Terra, são os ossos fossilizados, que podem ser encontrados inteiros ou em fragmentos, sendo o último caso mais comum.

A curiosidade de remontar os esqueletos a partir das partes dos fósseis já é antiga: no século XVIII, o paleontólogo francês Georges Cuvier estabeleceu o conceito de correlação das partes, que seria como esses ossos deveria se encaixar para formar um indivíduo funcional. Posteriormente, outro paleontólogo, Richard Owen, propôs um padrão geral para os vertebrados no qual todos teriam coluna vertebral, crânio e vértebras, e com isso foi possível definir uma estrutura base distinta e de fácil observação.

Dentro dos ossos são encontradas informações importantes sobre como eram as articulações, através da observação de ranhuras ou “calos” em sua superfície, mostrando que houve o atrito de musculatura com o osso. Além disso, temos pequenos furos, chamados forames, que mostram onde havia inserção de vasos sanguíneos fundamentais para manutenção da vida do osso. Através do estudo dessas marcas, é possível fazer a reconstrução de partes da musculatura. Por exemplo, com as informações obtidas a partir do fóssil de um crânio, juntamente com a análise de modelos tridimensionais, é possível determinar como era a mordida do animal, e estabelecer a força e angulação de abertura da boca.

 

Tegumento

Um dos importantes passos para a reconstrução das características físicas de um ser extinto é determinar o seu tegumento, a estrutura que reveste externamente o corpo dos animais. Existem diversos tipos de tegumento, como o exoesqueleto em artrópodes, as penas em aves e os pelos em mamíferos. O tegumento exerce importantes funções nos diferentes animais, como a proteção contra agentes externos e choques mecânicos, regulação de temperatura em animais homeotérmicos, e também como mecanismo de atração e identificação sexual (dimorfismo).

A estrutura tegumentar pode estar preservada nos fósseis na forma de impressão em rocha. Como  exemplo, o gênero Psittacosaurus, teve seu fóssil encontrado em uma província chinesa com impressões de suas escamas e de longos “filamentos” tegumentares partindo da cauda.

Psittacosaurus (Mayr et al. 2002) e sua reconstrução feita a partir do fóssil encontrado. Imagem: Jin Kyeom Kim

Já nos casos em que a evidência fóssil é extremamente escassa, havendo apenas fragmentos e partes incompletas do corpo do animal extinto, também se deve recorrer ao método do estudo filogenético. Por exemplo, há o caso do terópode do gênero Dromaeosaurus, o qual possuía o corpo possivelmente coberto por penas, hipótese criada a partir do estudo filogenético da família da qual pertencia, Dromaeosauridae.

 

Cor

Outro fator importante no processo de reconstrução de um animal extinto é a determinação da cor. Na maioria das vezes, o fóssil estudado não fornece informações sobre a coloração do animal a que ele pertence. Nesses casos, a cor é determinada por meio de inferências filogenéticas e comparações com equivalentes ecológicos atuais, ou seja, observando a coloração de animais que possuem os mesmos hábitos alimentares, que vivem em habitats semelhantes ou que tenham o mesmo nicho ecológico do animal em questão.

Existem poucos fósseis tão bem preservados ao ponto de nos permitirem determinar como era a cor de animais extintos. Em aves e mamíferos, as células responsáveis por produzir e armazenar pigmentos são os melanócitos, os quais realizam essas funções em organelas denominadas melanossomos. O tamanho e formato dos melanossomos estão ligados ao tipo de pigmento que produzem. Melanossomos com forma de bastão são responsáveis pelos pigmentos com padrões de cor escura (tons de cinza, preto e iridescência), chamados eumelanina. Já os melanossomos com de forma esférica e são responsáveis pelo padrão de cor clara, pigmentos chamados de feomelanina. Desse modo, essas diferenças entre os melanossomos e a preservação dessas organelas em alguns fósseis permitem que alguns cientistas indiquem o padrão de cor desses animais extintos.

Melanossomas fossilizados no tegumento do dinossauro Sinornithosaurus. Imagem: https://www.nature.com

No caso de peixes, répteis (com exceção do grupo das aves), anfíbios, cefalópodes e crustáceos, as células responsáveis pela coloração são chamadas de cromatóforos e são portadoras de pigmentos que refletem luz. Existem diversos tipos de cromatóforos (xantóforos, eritróforos, melanóforos, iridóforos, etc.), sendo que eles se diferem pelo tamanho, geometria e tipo de pigmento que determinam. Assim como os melanossomos, essas células podem ser detectadas em alguns fósseis, e, a partir de seu reconhecimento e da forma com que se arranjam no tegumento, podemos inferir a cor.

Reconstrução da cor de uma serpente fóssil a partir de cromatóforos preservados. Imagem: https://www.cell.com/current-biology

 

Paleoarte

O ramo responsável pela reconstrução artística da aparência de animais extintos é denominado “paleoarte”, e é constituído por ilustrações científicas ou naturalistas que têm como tema a paleontologia.

Os paleoartistas — nome dado aos profissionais da área — não utilizam apenas de sua capacidade criativa durante o processo de reconstrução: eles contam com o apoio de um banco de dados científicos. Cada artista detém um estilo próprio, o qual se manifesta na paleoarte de acordo com a composição da cena recriada: a presença ou não de movimento e a tonalidade das cores utilizadas são exemplos disso. Eles se apoiam ao máximo nas informações científicas disponíveis a fim de que sua representação do organismo extinto seja a mais fidedigna possível.

Realizada na atualidade com o auxílio de softwares, a paleoarte consiste em um processo de quatro estágios, como proposto por Renato Ghilardi, Rodolfo Nogueira e Felipe Elias:

O primeiro é chamado de Briefing. Nessa etapa, um acervo contendo o maior número de informações possíveis sobre o animal que pretende-se reconstruir é criado, com a inferência dos dados ausentes. Também é importante que o paleoartista tenha contato direto com o fóssil.

Fóssil do Uberabasuchus terrificus. Imagem: Rolling Drone Geotecnologias

Em seguida, esboços do esqueleto são esquematizados a partir do sistema de projeção cilíndrico-ortogonal. Denomina-se esse estágio de Projeções Ortográficas.

Esboço do esqueleto do Uberabasuchus terrificus. Imagem: Rodolfo Nogueira Soares Ribeiro

Já na Modelagem, uma malha poligonal com textura e cor é criada. Quanto mais polígonos ela apresentar, maior será seu detalhamento.

Projeção cilíndrico-ortogonal do Uberabasuchus terrificus. Imagem: Rodolfo Nogueira Soares Ribeiro

Por fim, na Imagem Final, é reconstituído o paleoambiente do animal, ocorrendo a inserção do modelo deste em tal ecossistema.Imagens processuais e imagem final da reconstituição do Uberabasuchus terrificus. Imagem: Rodolfo Nogueira Soares Ribeiro

A paleoarte não somente auxilia um paleontólogo a expressar características de seu objeto de estudo: ela também é responsável por atrair o interesse de pessoas com conhecimento escasso ou inexistente sobre o assunto. Por transformar informações um tanto quanto abstratas em uma obra visual, diz-se que a paleoarte é a ponte entre a linguagem científica e o público leigo.

 

Ciência et al: Aylla von Ermland sobre a autora

                       Beatriz Nazar sobre a autora

                       Fábio Henrique Moscardini Nobile sobre o autor

                       Juliana Freire sobre a autora

                       Matheus H. M. de Sousa sobre o autor

                       Rafael Masson Rosa sobre o autor

Fontes consultadas:

Amorim, D.S. Fundamentos de Sistemática Filogenética. Ribeirão Preto: Holos Editora, 2002.

Witmer, L.M. (1995). The Extant Phylogenetic Bracket and the importance of reconstructing soft tissues in fossils. In Functional Morphology in Vertebrate Paleontology (Thomason, J.J., ed.), pp. 19–33, Cambridge University Press.

Brown e colaboradores. An Exceptionally Preserved Three-Dimensional Armored Dinosaur Reveals Insights into Coloration and Cretaceous Predator-Prey Dynamics. Current Biology (2017).

Lingham-Soliar e colaboradores. The integument of Psittacosaurus from Liaoning Province, China: taphonomy, epidermal patterns and color of a ceratopsian dinosaur. Naturwissenschaften, V. 97, n. 5, p. 479-486, Maio, 2010.

Zhang, F. e colaboradores. Fossilized melanosomes and the colour of Cretaceous dinosaurs and birds. Nature, v. 463, p. 1075-1078, 2010.

Mcnamara e colaboradores. Reconstructing Carotenoid-Based and Structural Coloration in Fossil Skin. Current Biology (2016).

RIBEIRO, R.N.S. A intervenção do design na Paleontologia. 2009. (Projeto de Conclusão de Curso de Desenho Industrial com habilitação em Programação Visual) – FAAC, UNESP, Bauru, 2009. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/1f4HWZre_0SnuzyHX2QnIjTN7wzABrAyT/view>. Acesso em: Julho 2018.

Ghiliard, R.P. e colaboradores. Paleodesign: uma nova proposta metodológica e terminológica aplicada à reconstituição em vida de espécies fósseis. 2007. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/1Jwq86BhE2_9WozuG9BoAKxHggYTj5ilH/view>. Acesso em: Julho 2018.

(Editoração: Viviane Santana, Eduardo Borges e Caio Oliveira)

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