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Formato da cabeça de tartarugas: o que ele tem a nos dizer?

Ecomorfologia craniana de tartarugas e retração do pescoço como possível desencadeadora de diversificação ecológica

DESTAQUES:
• Forma do crânio de tartarugas está intimamente relacionada ao seu habitat, dieta, e à sua capacidade de retrair a cabeça para dentro do casco;
• Formas marinhas extintas possuíam o mesmo conjunto de estratégias alimentares das formas viventes, evidenciando processos de adaptação convergente;
• Capacidade de retrair o pescoço surgiu em torno do período Jurássico, quando as primeiras linhagens completamente aquáticas apareceram;
• A evolução dessa característica teria permitido o grupo a explorar novas possibilidades de dieta, desencadeando a diversificação de formas cranianas que encontramos hoje em dia.

Não é de hoje que paleontólogos e biólogos evolutivos se interessam pelas relações entre a forma da cabeça de vertebrados e aspectos de seu modo de vida, como, por exemplo, onde esses animais habitam ou o que comem. Neste trabalho, propusemos estudar as influências de aspectos da história natural de tartarugas sobre seu formato craniano. 

Encontramos evidência para múltiplos fatores contribuindo com essa relação, entre eles dieta, habitat, e a capacidade de tartarugas de retraírem seu pescoço. A partir desses resultados, pudemos inferir a presença de tais fatores já em espécies extintas. Este estudo sugere que essa capacidade de retração do pescoço teria surgido no Jurássico, período em que as primeiras tartarugas aquáticas são encontradas. Sobretudo,  sugerimos que a diversificação em ambientes aquáticos teria relação com essa capacidade de retração, o que lhes teria permitido explorar novos nichos, resultando na diversidade de formas que observamos atualmente .

 

Introdução

O crânio é uma parte anatômica muito importante dos animais vertebrados, uma vez que, na maioria das vezes, é a região do corpo que interage diretamente com o ambiente, seja no aspecto  visual, auditivo, ou então na aquisição e processamento de alimentos. Em tartarugas essa importância torna-se ainda mais clara se levarmos em consideração que elas possuem um casco rígido e pesado e que raramente (ou nunca!) utilizam seus membros para obter alimentos.

Apesar de contar com poucas espécies atualmente (cerca de 357), tartarugas podem viver em ambientes muito diferentes, desde desertos a pequenos riachos e oceanos. Essa ampla variedade de locais certamente oferece diferentes tipos de recursos alimentares para as espécies. Tal diversidade ecológica possivelmente se reflete na diversidade de formas de suas cabeças, que incluem desde as mais alongadas e delicadas até aquelas mais compactas e robustas. 

Uma outra característica importante do grupo é a capacidade de retrair o pescoço para dentro do casco. As primeiras hipóteses sobre o surgimento dessa habilidade consideram a ‘proteção’ como seu elemento principal. Ideias mais recentes propõem que a retração do pescoço esteja relacionada à captura de presas mais ágeis, por proporcionar uma maior mobilidade do pescoço que facilitaria alcançar esse tipo de alimento.

O rico registro fossilífero do grupo ainda documenta conquistas independentes tanto de ambientes continentais como marinhos, e diversas idas e vindas de um ambiente para o outro ao longo de quase 230 milhões de anos de história. Por exemplo, as primeiras tartarugas datam do período Triássico e, além de possivelmente serem terrestres, muito provavelmente não retraiam seu pescoço completamente. Portanto, ainda não se sabe exatamente em que momento da história do grupo das tartarugas essa característica teria aparecido.

Todos esses pontos mostram que as tartarugas são um bom exemplo para entendermos o surgimento de adaptações em estruturas como crânios. Assim, nosso estudo avalia quais são os principais fatores que influenciam na variação morfológica dos crânios de tartarugas. Por fim, utilizamos nossos resultados para inferir aspectos similares da história natural de espécies extintas, para melhor entendermos como esses aspectos estavam distribuídos no passado entre as diferentes linhagens.

 

Material e Métodos

Para realização do estudo, utilizamos modelos tridimensionais de cabeças de espécies viventes e extintas, obtidos a partir de imagens de tomografia computadorizada. Colocamos marcos anatômicos em pontos específicos desses modelos para medir alguns principais aspectos anatômicos, como as dimensões gerais, tamanho dos olhos ou a extensão da superfície trituradora, fundamental para muitas tartarugas no processamento de seus alimentos, já que elas não possuem dentes. Esses pontos foram analisados utilizando ferramentas estatísticas apropriadas para esse tipo de dados.

cabeça tartarugas
Figura 1. Modelos tridimensionais de três espécies de tartarugas viventes (acima) e suas respectivas formas matemáticas (abaixo), caracterizadas pelo uso de marcos anatômicos. Imagem: arquivo pessoal.

Coletamos extensivamente dados de outras pesquisas sobre os principais aspectos ecológicos de tartarugas, classificando-as quanto ao habitat em que se alimentam (aquático/terrestre), à presença de dietas específicas como herbivoria, durofagia ou mesmo alimentação por sucção, e também quanto à sua capacidade de retrair o pescoço. Essas informações ecológicas foram utilizadas em modelos estatísticos que testam se a variação observada no crânio de tartarugas pode ser explicada por alguma (ou algumas) dessas características de sua história natural. Com base em nosso melhor modelo estatístico, fizemos inferências dessas mesmas características para os fósseis.

 

Resultados e Discussão

O formato da cabeça de tartarugas se correlaciona principalmente com estratégias de alimentação em ambiente aquático e a capacidade de retrair seu pescoço. Espécies que se alimentam em ambiente aquático possuem crânios mais alongados, mais achatados e olhos posicionados bem à frente de suas cabeças, especialmente aquelas especializadas no uso de sucção. Esses aspectos provavelmente são importantes para superar a viscosidade da água, além de possibilitarem uma visão centrada em presas ágeis. Já para espécies que preferem alimentos mais duros, encontramos uma tendência de exibirem cabeças mais altas e com superfícies trituradoras mais avantajadas, o que facilita  o processo de maceração de conchas, por exemplo.

Nosso estudo mostra ainda que em todas as linhagens em que a retração do pescoço foi perdida, as espécies exibem uma arquitetura craniana muito parecida, sendo bem robusta, alta e ligeiramente mais larga. Além disso, apresentam um crânio muito ossificado, com menos espaço para inserção de músculos relacionados à retração do pescoço. Segundo nossas análises de inferências para os fósseis, essa capacidade teria surgido há 150 milhões de anos, no período Jurássico, fora do grupo-coronal. Inclusive, trata-se de um período em que as tartarugas começaram a cada vez mais estar presentes em ambientes aquáticos. 

A partir de então, a maior capacidade de retração do pescoço poderia ter permitido a exploração de novos tipos de estratégias de alimentação, nas quais uma maior mobilidade seria bem-vinda. Pudemos inferir, por exemplo, que todos os modos de alimentação encontrados em ambiente marinho hoje em dia (como o consumo de algas marinhas por tartarugas-verdes, consumo de moluscos por tartarugas-cabeçudas ou mesmo o uso de sucção pela tartaruga-de-couro) evoluíram também em outros grupos marinhos extintos não-aparentados. 

tartarugas evolução
Figura 2. Dois eixos de variação na forma do crânio de tartarugas viventes (círculos) e extintas (quadrados). As cores correspondem a diferentes grupos. Quadrados em cinza indicam espécies fora do grupo-coronal. Imagem: adaptada de Hermanson, G., Benson, R., Farina, B. e cols, 2022.

Assim sendo, com este estudo, pudemos mostrar que mesmo grupos de tartarugas que contam com poucas espécies atualmente – se comparado a outros vertebrados – podem ser usados como modelos para explicar conceitos primários da teoria da evolução, como as adaptações. Ressaltamos ainda a importância de convergências em crânios de tartarugas e que a relação clássica entre forma e ecologia também se aplica a esse carismático grupo.

 

Colaboração:

Guilherme Hermanson sobre o autor

Doutorando em Geociências pela Universidade de Friburgo (Suíça). Tem interesse pela evolução de tartarugas, principalmente pela relação da forma de seu esqueleto com sua história natural. Para isso, trabalha com dados de acervos de museus de história natural e coleções paleontológicas. A divulgação científica é ainda um hobby que busca tornar mais presente em seu dia-a-dia.

 

Artigo Original/Referência

O texto apresentado é uma adaptação do artigo “Cranial ecomorphology of turtles and neck retraction as a possible trigger of ecological diversification”, publicado pela revista Evolution em setembro de 2022, de autoria de Hermanson, G., Benson, R., Farina, B. e colaboradores. O artigo original pode ser acessado em https://doi.org/10.1111/evo.14629

 

(Editoração: Fernando F. Mecca, Loren Pereira e Nathália Khaled)

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