Nos ambientes universitários brasileiros, é comum a prática de cópia de trechos, capítulos, ou até mesmo livros didáticos e científicos inteiros: é a famosa “pasta do professor”, onde os materiais de leitura que serão usados durante o curso são deixados pelos docentes nos departamentos, ou nos próprios “xérox” das faculdades, para a livre cópia dos alunos. Ocorre que, ainda que tais cópias tenham fins didáticos e científicos, e que os alunos não obtenham lucro direto, tal prática constitui o crime de contrafação, previsto no art. 184 do Código Penal Brasileiro, pois representa violação direta aos chamados direitos autorais. A pena prevista para essa conduta varia de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa. Além disso, tal conduta é passível de indenização por danos morais e patrimoniais devida ao autor.
Como se sabe, a contrafação é muito comum nas faculdades brasileiras, que não apenas toleram, mas muitas vezes incentivam a cópia de livros ou partes deles nos seus espaços. Ainda que os estudantes utilizem as cópias de forma privada, é esperado o prejuízo dos autores e editores, que deixam de lucrar, bem como o enriquecimento ilícito por parte dos copistas instalados nas universidades. A grande peculiaridade da indústria da informação é a de que os custos de produção são muito mais elevados que os da sua reprodução, ou seja, a produção intelectual envolve maior custo, e consequentemente maior tempo, quando comparada à simples impressão que é feita pelas editoras. De acordo com a Pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro ano-base 2017, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) a pedido da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), o subsetor de livros didáticos, que apresentou queda real de 10,43%, e o de CTP (Científicos, Técnicos e Profissionais), que contaram com um recuo de 1,39%, foram os mais afetados em termos de faturamento, contribuindo para o fechamento negativo do setor como um todo em 2017.
Tais práticas têm provocado uma revolta da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos – ABDR, que tem recorrido à Polícia Judiciária e ao Poder Judiciário para impedir essas infrações à legislação autoral brasileira. No passado, os direitos autorais não eram objeto de proteção do Estado. O pioneirismo da proteção dos direitos do autor pelo Estado se deu no início do século XVIII, na Inglaterra, justamente na regulamentação da reprodução de livros, a partir da sanção do Copyright Act pela Rainha Ana. No século seguinte, a ideia ganhou destaque internacional por meio da Convenção de Berna, que ocorreu na Suíça. Assim, em 1886, os direitos autorais de obras literárias e demais obras artísticas foram internacionalmente reconhecidos entre os países que assinaram a Convenção, também chamados de unionistas, e a proteção foi estendida de maneira uniforme para além das fronteiras dos países de origem das invenções. A Convenção foi ratificada pelo Brasil e promulgada por meio do Decreto nº 75.699/75.
Atualmente, os direitos autorais são um ramo autônomo do direito privado, dotado inclusive de autonomia científica, que pode ser resumido como um “conjunto de prerrogativas que a lei reconhece a todo criador intelectual sobre suas produções literárias, artísticas ou científicas, de alguma originalidade”. Trata-se de uma proteção vitalícia aos autores, que detém exclusividade tanto no aspecto patrimonial (lucros com as reprodução e comercialização das obras), quanto no moral (ser indenizado de eventuais danos e prejuízos; ter a exclusividade na divulgação da obra, etc.).
No Brasil, os direitos autorais estão previstos como fundamentais na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XXVII), constituindo-se no que se denomina de “cláusula pétrea”, ou seja, são matérias que não podem ser suprimidas, em hipótese alguma, do texto constitucional. No plano infraconstitucional, ou seja, em lei específica que trata da matéria e que se encontra abaixo da Constituição Federal, os direitos autorais são regulamentados com mais detalhes pela Lei de Direitos Autorais, lei nº 9.610/ 98 – LDA.
A discussão da problemática envolvendo a cópia ilegal de obras literárias surge a partir da imprecisão do art. 46, II, da referida lei, que pontua não constituir ofensa aos direitos autorais “a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro”. Desse modo, a lei autoriza, em termos muito vagos, a cópia dos chamados pequenos trechos. No entanto, a própria lei não estabelece um limite para a legalidade dessa cópia.
Diante dessa lacuna, questiona-se: o que são pequenos trechos? Um capítulo? Metade de um capítulo? Um quinto da obra? Além disso, a lei não exige o fim didático ou científico para justificar tais cópias, prática denominada de contrafação pela própria Lei de Direitos Autorais (no art. 5º, VII) e, como já foi dito, prevista como crime no Código Penal Brasileiro.
Apesar da evolução tecnológica e do uso menos frequente de obras impressas, o debate ainda conserva sua atualidade. Recentemente, dois projetos de lei foram propostos pelo senador Valdir Raupp (PMDB-RO) nesse tema. O primeiro deles, o Projeto de Lei 34/2015, pretende alterar o art. 46, II, da LDA, substituindo a expressão “pequenos trechos” por “até 25% da obra”. O segundo, o Projeto de Lei 172/2017, busca alterar a LDA para estabelecer que não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução para fins didáticos ou científicos, sem intuito de lucro, de obra esgotada (Pelo art. 63, §2º, da LDA, considera-se esgotada uma obra quando restarem em estoque, em poder do editor, exemplares em número inferior a 10% do total da edição). Ambos os projetos foram arquivados com o fim da legislatura, mas podem voltar à pauta se pelo menos um terço da Casa (27 senadores) apresentar um pedido de desarquivamento.
Como se percebe, é atual e de fundamental importância a discussão acerca dos limites às cópias de obras literárias no ambiente universitário, uma vez que estão em jogo não apenas os direitos autorais, mas também outros valores igualmente tidos como fundamentais pela Constituição Federal de 1988, como os de comunicação social e acesso à informação. É necessário que a lei seja mais clara para regulamentar essa conduta que, há muito tempo, integra o cotidiano de milhares de estudantes do ensino superior.
Possível solução ao impasse:
No cenário brasileiro de tolerância à suposta pirataria editorial no ensino superior, materializada na famosa pasta do professor, há poucos anos surgiu uma iniciativa que pode contornar o problema até que a LDA seja modificada e especifique melhor o assunto: a versão online da pasta do professor. Trata-se de uma ideia pioneira no mundo, pela qual algumas editoras brasileiras, em parceria com a ABDR, disponibilizam o conteúdo de obras publicadas em um portal na internet para aquisição fracionada tanto pelos alunos quanto pelos professores. Pelo site, o comprador seleciona o capítulo que deseja para seus estudos, paga por ele e, em seguida, imprime o material em bibliotecas ou faculdades. Essa talvez seja uma saída possível para equilibrar, de um lado, a proteção constitucional dos direitos do autor e, de outro, garantir o acesso à cultura e educação, democratizando o acesso à informação no ensino superior.
O ambiente virtual da pasta do professor pode ser acessado pelo endereço eletrônico: https://loja.minhabiblioteca.com.br/.
Ciência et al: Patrícia de Paula Queiroz Bonato
Fontes consultadas:
Menezes, E. D. Curso de direito autoral. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007, p. 23.
Chaves, A. Direito de autor. Princípios fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 17.
https://snel.org.br/apresentado-o-resultado-da-pesquisa-producao-e-vendas-do-setor-editorial-brasileiro-ano-base-2017/. Acesso em 25 março 2019.
(Editoração: Viviane Santana, Eduardo Borges, André Pessoni e Caio Oliveira)