Image default

Como são nossas interações com os animais silvestres?

#Ciência et al. (Especiais temáticos repletos de informações científicas)

Processos inclusivos: alternativa para alcançar a coexistência humano-fauna.

DESTAQUES:
– O aumento populacional, a expansão urbana e a ampliação de áreas de produção agrícola aumentam a chance de interações com a fauna silvestre;
– Há diferentes formas de interações entre humanos e a fauna silvestre;
– Práticas relacionadas à redução de conflitos entre humano e outros animais buscam alternativas que promovam sua coexistência;
– Em relação às interações humano-fauna é preciso olhar para as percepções e comportamentos das pessoas e incluí-las no processo de tomada de decisões.

Historicamente, determinamos certas áreas à vida humana, como cidades, e outras à vida silvestre, como áreas protegidas para conservação. Estas designações influenciam nossos valores, atitudes e comportamentos em relação à biodiversidade. O que, por sua vez, afeta a forma como interagimos (e percebemos esta interação) com a fauna. Por exemplo, se você gosta de animais ou já teve experiências passadas positivas com eles, pode ser que você não se incomode tanto se encontrarem um gambá no seu bairro ou na sua casa. Por outro lado, pode ser que você tenha medo destes animais e o fato de eles estarem tão próximos seja motivo de preocupação. 

O fato é que há diferentes formas de interações entre humanos e a fauna, algumas inclusive envolvendo conflitos. Podemos classificar essas interações de acordo com os impactos (positivos ou negativos) às duas partes dessa relação, as populações humanas e os animais silvestres (Figura 1):  

  1. Interações nas quais há impactos negativos tanto para as populações humanas quanto para os outros animais. Por exemplo: atropelamentos de animais silvestres. 
  2. Interações em que há vantagens para a população humana, mas impactos negativos à fauna. Aqui, se enquadram atividades como super exploração e tráfico de animais.
  3. Interações em que há vantagens para a fauna, mas prejuízos para humanos. Por exemplo, quando há superpopulação de animais como maritacas, javalis, mosquitos, que podem causar danos a plantações e doenças. 
  4. Interações nas quais há impactos positivos para ambas as partes, como em algumas situações vinculadas ao turismo ou ao uso sustentável de recursos naturais. Nesse cenário poderia haver a convivência entre humanos e outros animais. 

 

Atingir um cenário de convivência pode ser algo difícil e nem sempre é necessário para conservação. Desta forma, práticas relacionadas à redução de conflitos entre humanos e outros animais buscam alternativas que promovam a coexistência humano-fauna. Isto é, situações em que nenhuma das partes sofre impactos negativos consideráveis, de forma que uma relação de maior tolerância e aceitação seja possível.

animais silvestres
Figura 1. Ilustração dos possíveis cenários de interação entre humanos e outros animais. O eixo y representa a dimensão de impactos vinculados à população humana e o eixo x, à fauna silvestre. A imagem é uma tradução e adaptação da figura presente no artigo de Marchini et al. (2021).

Um exemplo prático de interações conflituosas e alternativas para promover coexistência

O aumento populacional humano aliado a fatores como a expansão urbana e a ampliação de áreas de produção agrícola podem aumentar a chance de interações com a fauna silvestre. Neste cenário, conflitos podem emergir. 

Esta é a realidade para áreas verdes urbanas (como parques) que, com o aumento e adensamento das cidades, foram se tornando isoladas de outros fragmentos naturais. Este isolamento pode causar a extinção local de predadores de grande porte, que normalmente realizam o controle populacional dos mesopredadores. Este desequilíbrio ecológico aliado à oferta de alimentos antrópicos pode acarretar no aumento populacional dos mesopredadores, como é o caso dos quatis.

Quatis (Nasua nasua, Linnaeus, 1766) são mamíferos de médio porte, com hábitos onívoros e generalistas. Geralmente, vivem em grupos. A espécie possui ampla distribuição na América do Sul e está presente em todos os biomas brasileiros, sendo relatada como vulnerável (VU) pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio. 

Os quatis possuem histórico de interações com humanos, principalmente devido ao hábito oportunista. Há relatos de quatis se alimentando de comidas deixadas por visitantes e em lixos de parques, como o Parque Nacional do Iguaçu (PR) e o Parque Nacional da Tijuca (RJ). 

Figura 2. Foto de quatis mexendo em lixeiras nas Cataratas do Iguaçu. Fonte: Wikimedia.

A densidade populacional desta espécie pode chegar a valores como os reportados no Parque Ecológico do Tietê, em São Paulo, no qual foi estimada uma densidade mínima de 125 indivíduos/km², a maior registrada para a espécie.

O grande número de quatis em parques urbanos aliada a alimentação antrópica destes animais (em lixos e por parte de visitantes e moradores do entorno) pode causar conflitos com as pessoas. Possíveis conflitos incluem mordidas ou arranhões em visitantes do parque e a transmissão de doenças (de animais domésticos para os quatis – e vice-versa -, e de quatis para humanos, como a raiva).

Nestes casos, de acordo com cada situação e problemática, possíveis estratégias para coexistência poderiam estar vinculadas a: 

  1. mudança de comportamento de visitantes e moradores do entorno do parque quanto ao hábito de oferecer comida ou deixar alimentos em locais de fácil acesso aos quatis; 
  2. mudanças de hábitos de descarte de lixo no parque e no entorno;
  3. campanhas de educação com informações sobre os quatis e seus hábitos alimentares; 
  4. campanhas de vacinação de animais domésticos e guarda responsável. 

 

A principal questão quando pensamos nos encontros e interações com os animais silvestres (sejam eles em áreas urbanas ou não) é que não podemos focar apenas na fauna. No exemplo acima, para resolver possíveis conflitos não poderíamos focar apenas em análises da saúde e tamanho populacional dos quatis. É preciso entender também as dimensões humanas vinculadas à problemática.

Nossas percepções sobre a interação com a fauna e o local desta fauna nas cidades influenciam nossos comportamentos. Mas, não só isso, é preciso que as pessoas também sejam incluídas no processo de tomada de decisão. A busca pela coexistência humano-fauna não pode se basear em soluções prontas de cima para baixo (‘top-down’). É necessário também que haja um esforço para que elas partam do nível individual e local (‘bottom-up’) por meio de processos que permitam a inclusão de diferentes stakeholders.

Por fim, é importante mencionar que processos que contemplam esta inclusão de diferentes pontos de vista possuem diversas vantagens (não só para promoção da coexistência humano-fauna). Eles podem aumentar o conhecimento das pessoas sobre a tomada de decisões, aumentar a força de movimentos democráticos e aumentar a legitimidade e confiança do processo, além de reduzir a intensidade de conflitos. Nesse sentido, podem auxiliar na organização do grupo e comunidades para atuação em outras esferas participativas. Cidadãos engajados tomam suas próprias iniciativas e são agentes ativos de mudança.

 

Colaboração:

Anaís Freitas Silveira sobre a autora

Anaís é bacharela e licenciada em Biologia pela Universidade de São Paulo (USP). É mestranda no Programa de Pós – Graduação em Biologia Comparada da USP. Trabalha com áreas protegidas e conselhos participativos, acredita que os coletivos reúnem muita força e potencial para mudança.

 

Bruna Lima Ferreira sobre a autora

Bruna é bacharela e licenciada em Biologia pela Universidade de São Paulo (USP). É mestre pelo Programa de Pós – Graduação em Psicobiologia da USP. É fascinada pelas relações que as pessoas têm com a natureza e pela busca de estratégias que promovam comportamentos mais sustentáveis e a reaproximação (e valorização) da sociedade e natureza. Acredita no papel da popularização científica e ensino de ciências para construção de uma ciência democrática.

Karen Arine Souza sobre a autora

Karen é Ecóloga, Guia de Turismo no Pantanal e pesquisadora do Projeto Ariranhas. Acredita que o conhecimento só é válido se compartilhado.

 

 

Referências:

Artigo científico intitulado “Avaliação do risco de extinção do Quati Nasua nasua (Linnaeus, 1766) no Brasil. Avaliação do Estado de Conservação dos Carnívoros”, publicado na revista BioBrasil em 2013, de autoria de Beisiegel, Beatriz de Mello; Campos, Cláudia Bueno. 

Artigo científico intitulado “Does stakeholder involvement really benefit biodiversity conservation?”, publicado na revista Biological Conservation em 2013, de autoria de Young, Juliette C, e colaboradores. 

Artigo científico intitulado “Examining Options to Promote Human–Wildlife Coexistence”, publicado na revista Conservation Biology em 2020, de autoria de Cork, Susan Catherine.  

Artigo científico intitulado “Influência da Disponibilidade de Alimentos de Origem Antrópica sobre o Comportamento Natural de Nasua nasua (Linnaeus, 1766) no Parque Nacional da Serra dos Órgãos, Teresópolis, Rio de Janeiro”, publicado na revista Biodiversidade Brasileira em 2022, de autoria de Bacellar, Ana Elisa de Faria. 

Artigo científico intitulado “Planning for human-wildlife coexistence: Conceptual framework, workshop process, and a model for transdisciplinary collaboration”, publicado na revista Frontiers in Conservation Science em 2021, de autoria de Marchini, Silvio e colaboradores.

Artigo científico intitulado “Subtle implications: public participation versus community engagement in environmental decision-making”, publicado na revista Australasian Journal of Environmental Management em 2016, de autoria de Ross, Helen; Baldwin, Claudia; Carter, R. W.

Capítulo de livro intitulado “Governança democrática e gestão participativa de áreas protegidas: um caminho sem volta para a conservação da biodiversidade no caso brasileiro”, publicado no livro A diversidade cabe na unidade? Áreas Protegidas do Brasil em 2014, de autoria de Irving, Marta de Azevedo.  

Capítulo de livro intitulado “Human-wildlife conflicts and the need to include coexistence”, publicado no livro Human-Wildlife Interactions: Turning Conflict into Coexistence em 2019 de autoria de Frank, Beatrice; Glikman, Jenny A. 

Dissertação de mestrado defendida no Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Minas Gerais, no ano de 2011, intitulada “Levantamento Populacional e Manejo de Quatis (PROCYONIDAE: Nasua nasua) no Parque das Mangabeiras, Belo Horizonte, MG”, de autoria de Hemetrio, Nadja Simbera.

Matéria no site da ONU intitulada “How certain are the United Nations global population projections? Prepared by the Population Division of the United Nations Department of Economic and Social Affairs” publicada em 2019. (https://www.un.org/en/development/desa/population/publications/pdf/popfacts/PopFacts_2019-6.pdf).

Matéria no site da PRÓ-CARNÍVOROS intitulada “Quati” acesso em 2022. (https://procarnivoros.org.br/animais/quati/#conservacao).

Tese de Doutorado defendida no Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Minas Gerais, no ano de 2017, intitulada “Levantamento Populacional de Quatis (PROCYONIDAE: Nasua nasua) no Parque das Mangabeiras”, de autoria de Hemetrio, Nadja Simbera.

The IUCN Red List of Threatened Species, ‘Nasua nasua’, de autoria de Emmons, L.; Helgen, K. atualizado em 2016. 

(Editoração: Caio Oliveira e Loren Pereira)

Postagens populares

Cannabis sativa: da extração de óleos essenciais à utilização na indústria têxtil

IDC

Do encantamento à conservação: como nós interagimos com a natureza?

IDC

Grupos Sanguíneos Raros

IDC

O que os patos e a Fórmula 1 têm em comum?

IDC

Conheça a biorremediação do petróleo pela Pseudomonas aeruginosa

IDC

O melhor da ciência em 2023

IDC