Image default

Memória: Funcionamento e Importância

#Ciência et al. (Especiais temáticos repletos de informações científicas)

(Quase) tudo o que você precisa saber sobre a memória.

DESTAQUES:
– A memória é fundamental para os seres humanos e é muito importante para outros animais;
– O processo de criação das memórias é complexo e envolve várias combinações de regiões do cérebro, podendo ser classificada de diversas formas;
– Diversos fatores podem ter influência na memória: sexo, idade, lesões ou doenças.

A memória é fundamental para os seres humanos e é muito importante para os outros animais, pois ela define quem somos e influencia nossas decisões. Além disso, nos permite registrar informações importantes, como os rostos dos membros da família ou o caminho de volta para casa; executar habilidades diárias, como dirigir um automóvel ou usar uma faca de maneira segura; e até mesmo manter informações simples e imediatas, como o endereço do site que você está acessando agora.

Além disso, memórias podem nos proteger de situações desagradáveis ou perigosas se formos capazes de reter e acessar informações que aprendemos no passado, e estão relacionadas às emoções e hormônios. Por exemplo, durante uma situação de estresse, uma memória pode ser fortemente armazenada como resultado de uma emoção intensa e ser acessada no futuro para impedir que essa situação se repita.

O processo de criação de algo tão relevante e complexo envolve várias combinações de regiões do cérebro e pode ser classificado de várias formas. Uma divisão abrangente que pode ser feita divide a memória em declarativa (explícita) e não declarativa (implícita): a primeira é definida como uma série de experiências do passado que são registradas e podem ser relembradas e a segunda é um conjunto de experiências passadas que influenciam o comportamento atual, embora não sejam acessadas conscientemente.

A memória declarativa, comumente chamada apenas de memória, pode ainda ser subdividida em experiências ou eventos pessoais (por exemplo, o que você comeu no almoço ou onde passava as férias durante a infância), e em informações factuais, ou seja, o conhecimento geral que acumulamos durante a vida (incluindo a fórmula de Bhaskara aprendida na escola e as tradições da sua família), muito influenciado pela sociedade e com grande influência no nosso comportamento.

A memória não declarativa, por outro lado, é acessada sem que a pessoa se dê conta e está relacionada à habilidades motoras (habilidades procedimentais, como aprender a andar de bicicleta); aprendizado associativo, em que dois eventos, estímulos ou respostas, são conectados (condicionamento); priming, um processo em que um estímulo influencia a resposta do estímulo subsequente (por exemplo, a palavra médico é reconhecida mais rápido depois da palavra hospital do que da palavra casa); e aprendizagem não associativa, dividida em habituação, quando a exposição repetida a um estímulo diminui a capacidade de resposta – como se você se acostumasse com ele; e sensibilização, quando a exposição repetida a um estímulo aumenta a capacidade de resposta – cada vez respondendo de forma mais intensa.

memória
Figura 1: Memória de longo prazo e suas subdivisões. Imagem: Kandel, E. e colaboradores, 2014.

A duração dessas memórias pode variar dependendo de vários fatores. Memórias declarativas podem ser subdivididas em memória de trabalho, que é muito breve, apenas alguns minutos; de curto prazo, com duração de horas e vulneráveis à interrupção – se tropeçar, esquece o que estava pensando; ou de longo prazo, na ordem de dias a anos, que é criada pela conversão seletiva de algumas memórias de curto prazo por um processo chamado de consolidação de memória. Alternativamente, a memória não declarativa geralmente exige alguma repetição e requer tempo e esforço para ser armazenada permanentemente – é fato que ninguém aprende a tocar piano em um dia. Esses processos de armazenamento de memória, no entanto, não são rígidos e definitivos. As informações são armazenadas de forma difusa e, no futuro, podem ser unidas para criar uma memória. Por isso, é possível que algumas partes se percam e a pessoa se lembre dos fatos de forma imprecisa ou de uma forma que necessite ser completada.

Figura 2: Classificação das memórias quanto ao tempo. Imagem: Bear, M. e colaboradores, 2016.

Todos esses processos envolvem várias regiões cerebrais trabalhando simultaneamente para codificar, armazenar e recuperar eventos, habilidades ou fatos, e as regiões envolvidas variam de acordo com o tipo de informação recebida. Podemos citar o envolvimento de, notavelmente, córtex pré-frontal, partes do giro temporal medial e gânglios basais na memória de trabalho de curto prazo; o hipocampo e áreas corticais adjacentes do lobo temporal estão relacionadas à conversão seletiva de memórias de curto prazo; e um conjunto de numerosas estruturas neurais são necessárias para armazenar memórias de longo prazo. Assim, uma estrutura única que reúne todas as informações registradas provavelmente não existe.

Figura 3: Regiões do cérebro envolvidas na memória de longo prazo. Imagem: Kandel, E. e colaboradores, 2014.

Estudos sobre a memória em humanos são relativamente limitados e geralmente envolvem acidentes ou alterações cerebrais em decorrência de doenças, de modo que pesquisadores tenham acesso a um cérebro alterado, que podem estudar junto às alterações comportamentais do paciente. Nesse contexto, é importante mencionar o caso de Henry Molaison (ou “paciente H. M.”), um paciente que teve grande parte de seu lobo temporal medial removido para aliviar crises epilépticas intratáveis, o que causou um déficit de memória debilitante, mas sem notável efeito em sua inteligência ou personalidade. Ele ainda tinha memória de trabalho e memória de longo prazo para eventos anteriores à operação, indicando que a área removida não era essencial para a memória de curto prazo e que a maioria das memórias de longo prazo não estavam armazenadas lá. Entretanto, ele não possuía mais o mecanismo para converter e armazenar memórias declarativas de longo prazo – ele conseguia aprender tarefas novas sem sequer lembrar que já as havia feito! O caso apresenta uma clara ligação entre a ação do lobo temporal medial e a memória e, além disso, é um dos casos de lesão cerebral que permitiu aos cientistas entender mais sobre como a memória funciona.

Figura 4: Lesão cerebral no paciente H. M. (a) e cérebro normal (b). Imagem: adaptada de Bear, M. E colaboradores, 2016.

Embora as regiões cerebrais e suas conexões sejam os principais componentes que influenciam a aquisição e o armazenamento da memória, existem outras variáveis que modificam essas regiões e, como resultado, impactam a memória, como sexo e idade. 

As diferenças entre machos e fêmeas podem mudar as vias de memória devido a diferenças físicas ou hormonais. Estudos já mostram diferenças relacionadas ao sexo no processamento de informações emocionais, auditivas, visuais e linguísticas e na memória de trabalho. Também foram relatadas mudanças na sobrevivência de neurônios em culturas celulares e na resposta aos hormônios do estresse, podendo ter influência nessa relação entre processo de memória e comportamento. 

Além disso, sabemos que há uma clara diferença entre a memória de uma criança pequena e de uma pessoa idosa. A primeira ainda está aprendendo a processar estímulos sensoriais e tem poucas memórias armazenadas, e a segunda aprendeu e lembrou de eventos por vários anos, provavelmente já até esqueceu alguns deles. Uma análise de vários estudos mostrou diferenças relacionadas à idade na atividade cerebral em múltiplas tarefas cognitivas, exibindo ativação diferente em regiões do cérebro de adultos jovens ou idosos e, mesmo que não seja possível determinar diferenças gritantes, os resultados apontam para um uso menos eficiente ou eficaz das regiões cerebrais por idosos, o que pode influenciar a memória.

Existem inúmeras outras maneiras pelas quais a idade afeta o cérebro, que vão desde mudanças sutis, como as relatadas acima, até síndromes incapacitantes, como a doença de Alzheimer, considerada uma forma comum de demência neurodegenerativa muito debilitante. A doença ocorre, provavelmente, devido ao acúmulo de agregados de peptídeos (partes que formam as proteínas) no cérebro. A superprodução ou redução da sua eliminação promove a agregação e a formação de placas tóxicas, que levam à inflamação, estresse oxidativo e eventual dano e morte celular, processos que causam os sintomas. O paciente geralmente apresenta defeitos de memória declarativa graduais, prejudicando também a capacidade de resolução de problemas e a linguagem, ocasionando alterações de comportamento e impossibilidade de realizar tarefas diárias.

Figura 5: Ressonância magnética funcional mostrando alterações no nível de oxigenação do cérebro relacionadas à idade cerebral e alterações neurodegenerativas. Imagem: adaptada de Kandel, E. e colaboradores, 2014.

Assim como observado em pacientes com Alzheimer, existem diversos relatos de danos às áreas cerebrais causando amnésia ou mesmo agressividade, enfatizando sua significância e complexidade. O processamento da memória une e gerencia diferentes estímulos químicos e elétricos provenientes de diferentes regiões do corpo, afetando o aprendizado e o comportamento, mesmo que não seja acessada conscientemente. O ato de lembrar tem grande impacto em uma série de atividades, que vão desde a sobrevivência básica (por exemplo, reconhecer um animal irritado e se preparar para fugir) até ações refinadas e únicas (como tocar uma música em um violino), apresentando-se como uma vantagem evolutiva essencial. Em conclusão, podemos destacar a interação entre diferentes regiões cerebrais como elemento fundamental da memória, bem como a importância de manter tais regiões funcionais para a preservação do bom desempenho social e a sobrevivência de um indivíduo.

 

Colaboração:

André Moreira Pessoni sobre o autor
André é bacharel em Informática Biomédica e mestre em ciências pela USP. Atualmente é aluno de doutorado em neurociências na Universidade Laval, Canadá. Trabalha com bioinformática e tenta unir os mundos da computação e da bioquímica. Sempre teve interesse em ser cientista e passou a fazer divulgação científica por prazer (o que logo se tornou uma necessidade).

 

Fontes e referências bibliográficas:

Livro “Neurociências: Desvendando o sistema nervoso”, de autoria de Bear, M.; Connors, B.; e Paradiso, M., publicado pela editora Artmed em 2017. 4a ed.

Livro “Neural Plasticity and Memory: From Genes to Brain Imaging”, de autoria Bermúdez-Rattoni, F., publicado pela editora CRC Press/Taylor & Francis em 2007. 1a ed.

Livro “Princípios de Neurociências”, de autoria de Kandel, E.; Schwartz, J.; Jessell, T. e colaboradores, publicado pela editora Artmed em 2014. 5a ed.

Livro “Handbook of Clinical Neurology”, volume 167, capítulo 13, de autoria Soria Lopez, J..; González, H.; e Léger, G., publicado pela editora Elsevier em 2019. 1a ed.

Artigo científico intitulado “What are the differences between long-term, short-term, and working memory?”, publicado na revista Progress in Brain Research em 2008, de autoria de Cowan, N.

Artigo científico intitulado “The hippocampus and mechanisms of declarative memory”, publicado na revista Behavioural Brain Research em 1999, de autoria de Eichenbaum, H.

Artigo científico intitulado “Neurocognitive Architecture of Working Memory”, publicado na revista Neuron em 2015, de autoria de Eriksson, J.

Artigo científico intitulado “The functional neuroanatomy of episodic memory”, publicado na revista Trends in Neurosciences em 1997, de autoria de Fletcher, P.; Frith, C.; e Rugg, M.

Artigo científico intitulado “Direct evidence of oxidative injury produced by the Alzheimer’s beta-amyloid peptide (1-40) in cultured hippocampal neurons”, publicado na revista Experimental neurology em 1995, de autoria de Harris, M.; Hensley, K.; Butterfiel, D.; e colaboradores.

Artigo científico intitulado “Memory lost and regained following bilateral hippocampal damage”, publicado na revista Journal of Cognitive Neuroscience em 1999, de autoria de Henke, K.; Kroll, N.; Behnia, H.; e colaboradores.

Artigo científico intitulado “Memory and the brain”, publicado na revista Journal of Dental Education em 2002, de autoria de Robertson, L.

Artigo científico intitulado “Memory systems in the brain”, publicado na revista Annual Review of Psychology em 2000, de autoria de Rolls, E.

Artigo científico intitulado “Memory modulation”, publicado na revista Behavioral Neuroscience em 2011, de autoria de Roozendaal, B. e McGaugh, J.

Artigo científico intitulado “Storage and executive processes in the frontal lobes”, publicado na revista Science em 1999, de autoria de Smith, E.; e Jonides, J.

Artigo científico intitulado “Reliable differences in brain activity between young and old adults: a quantitative meta-analysis across multiple cognitive domains”, publicado na revista Neuroscience & Biobehavioral Reviews em 2010, de autoria de Spreng, R.; Wojtowicz, M.; Grady, C.

Artigo científico intitulado “Memory and the hippocampus: a synthesis from findings with rats, monkeys, and humans.”, publicado na revista Psychological Review em 1992, de autoria de Squire, L.

Artigo científico intitulado “Memory trace reactivation in hippocampal and neocortical neuronal ensembles”, publicado na revista Current Opinion in Neurobiology em 2000, de autoria de Sutherland, G.; e McNaughton, B.

Artigo científico intitulado “Functional Connectivity of Multiple Brain Regions Required for the Consolidation of Social Recognition Memory”, publicado na revista Journal of Neuroscience em 2017, de autoria de Tanimizu, T.; Kenney, J.; Okano, E.; e colaboradores.

Artigo científico intitulado “Masked presentations of emotional facial expressions modulate amygdala activity without explicit knowledge”, publicado na revista Journal of Neurosciences em 1998, de autoria de Whalen, P.; Rauch, S.; Etcoff, N.; e colaboradores.

Artigo científico intitulado “The relationship between stress induced cortisol levels and memory differs between men and women”, publicado na revista Psychoneuroendocrinology em 2001, de autoria de Wolf, O.; Schommer, N.; Hellhammer, D.; e colaboradores..

(Editoração: Fernando Mecca e Loren Pereira)

Postagens populares

Você conhece a Tristeza Parasitária Bovina?

IDC

Risco eletrostático e sua prevenção

IDC

Antibióticos fortalecem bactérias?

IDC

Por que se vacinar contra a febre amarela?

IDC

Nem vírus, nem bactéria: as infecções causadas por proteínas!

IDC

Proteja seu gato de FIV e FeLV

IDC