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Um oceano previsível

#Década do Oceano (Uma parceria pela sustentabilidade do oceano)

Mapear o oceano é imprescindível para prever fenômenos e proteger a biodiversidade marinha

Destaques:
– A maioria dos ambientes marinhos ainda não foram mapeados.
– A atmosfera e o oceano estão interligados, por isso mudanças em um geram mudanças no outro.
– Contaminantes quase invisíveis, como os microplásticos, são abundantes no oceano e podem causar grande impacto.

Conhecemos mais da superfície da Lua do que a do Oceano. Essa afirmação é antiga, mas válida ainda hoje. A superfície do planeta Terra é, em sua maior parte, coberta por água salgada. E por baixo de tanta água, 80% do oceano não está mapeado. Esse desconhecimento é ainda maior quando se fala em áreas mais profundas ou de regiões costeiras de países menos desenvolvidos. Sendo assim, podemos afirmar que ainda não temos um oceano verdadeiramente previsível, pois isso vai muito além de poder antecipar condições de navegação, por exemplo.

Basicamente, todas as formas de vida se relacionam com o oceano ou com fenômenos que dependem dele, por isso, é imprescindível compreender a sua dinâmica e como ele se comportará frente às alterações, que são constantes. O mapeamento do oceano pode ser feito de diferentes formas. A seguir, abordaremos três linhas de estudo distintas, mas com objetivos em comum: aprofundar o conhecimento sobre os diferentes ambientes marinhos e compreender como o oceano reage às mudanças causadas por fenômenos bióticos e abióticos.

Mapeamento do fundo marinho

O oceano possui profundidade variável e, assim como em regiões continentais, mudanças nos parâmetros físicos, químicos e biológicos podem estar intimamente associadas às variações de relevo. Logo, é necessário conhecer o fundo marinho para, por exemplo, identificar áreas de importância ecológica.

O mapeamento dessa região é atualmente realizado por variadas técnicas, tanto remotas quanto in situ, ou seja, no campo. O sensoriamento remoto é uma ferramenta usada no mapeamento de regiões costeiras e recifes de coral desde a década de 70, quando o primeiro satélite Landsat foi lançado. Imagens de satélite possibilitam a visualização da superfície do mar (e de alguns de seus parâmetros, como a temperatura) por sensores a bordo de satélites em órbita ao redor da Terra.

Recentes evoluções tecnológicas e integração com outras técnicas computacionais possibilitaram o uso dessa ferramenta em diversos campos da oceanografia, tanto para estudos em larga escala como os de alta resolução. Além disso, diversos sensores têm suas imagens disponibilizadas gratuitamente, tornando essa tecnologia uma excelente opção em termos de custo-benefício. Em geral, apesar de limitações devido à penetração da luz na água, o sensoriamento remoto é considerado uma ferramenta segura para investigar habitats de fundo quando calibrada com dados de campo confiáveis.

A plataforma continental do nordeste brasileiro concentra uma grande variedade de habitats (recifes de coral, cânions, paleocanais etc). Esforços para mapear esses ambientes, tão importantes do ponto de vista socioeconômico e ecológico, vêm sendo realizados por pesquisadores em todo o Brasil. Um exemplo é uma pesquisa que foi realizada na zona costeira de Tamandaré, no sul de Pernambuco. Por meio de técnicas de machine learning aliadas ao sensoriamento remoto, o objetivo foi indicar áreas de alta relevância ecológica, identificar e prever regiões propícias para o crescimento de corais. Foi possível mapear a presença e prever a distribuição de colônias de coral-de-fogo (Millepora alcicornis), uma das mais abundantes espécies nos ambientes coralíneos da região. Aliado ao mapeamento de usos como pesca e turismo, o modelo demonstrou a importância das áreas de conservação e, em especial, da área de preservação marinha que existe na região. Além disso, o mapeamento dos diferentes habitats presentes nos recifes (ex. prados de gramíneas, macroalgas, areia, etc.) também foi realizado utilizando imagens de satélite de alta resolução. Identificar áreas propícias para o crescimento e desenvolvimento de corais é de suma importância para a conservação e para aplicação de medidas específicas de manejo, considerando os cenários de mudanças climáticas e aquecimento do oceano que levam ao branqueamento e morte de corais.

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Recife de coral, com destaque para a espécie do coral-de-fogo Millepora alcicornis e juvenis do peixe Haemulon aurolineatum. Imagem: Camila B. L. da Silveira.

Regiões mais profundas da plataforma continental da região também foram mapeadas com imagens do sensor Landsat-8 no estudo de Da Silveira e colaboradores (2020). As imagens de satélite foram usadas para identificar feições subaquáticas em uma região marinha de aproximadamente 10 mil km2. Foi o primeiro estudo utilizando imagens para visualizar paleocanais no oceano. No estudo, 15 paleocanais foram identificados em áreas de mais de 50 m de profundidade, usando imagens de satélite de média resolução obtidas de forma gratuita. Alguns desses canais são conhecidos pela importância pesqueira e abrigam agregações reprodutivas de peixes, tornando-os áreas de prioridade para conservação e manejo.

Esses estudos são parte do Projeto Ecológico de Longa Duração Tamandaré Sustentável (PELD-TAMS). Juntamente com outras pesquisas, esses estudos demonstram a importância do mapeamento e do uso de técnicas de sensoriamento remoto para obtermos uma visualização integrada do fundo marinho. Com isso, poderemos também identificar e prever como a biodiversidade está distribuída nessas regiões e quais ações podemos tomar para evitar maiores perdas ambientais.

Monitoramento climático no oceano

Além do conhecimento sobre o fundo marinho, precisamos compreender mais sobre a relação entre o oceano e o clima. O oceano está no centro do sistema climático da Terra. O volume de água e suas propriedades particulares fazem com que ele absorva e retenha mais calor que o ar, além de armazenar gases, como o CO2. Por essas razões, o oceano é capaz de minimizar os efeitos do aquecimento global e garantir uma melhor qualidade de vida humana (e de outras formas de vida também!), amenizando climas extremos. 

Para entender o comportamento do oceano é preciso olhar também para a atmosfera. Um cenário muito corriqueiro é um dia com muito vento que deixa o mar mais agitado. Alguns estudos mostram o quão estão interligados o oceano e a atmosfera, como um estudo publicado em 2021, que relacionou extremos de ondas na região oeste do Atlântico Sul com a passagem de ciclones extratropicais no inverno, além de outros que relacionaram eventos de ressacas marítimas à atuação de ciclones extratropicais na costa brasileira. 

Entender e prever como o oceano responderá aos fenômenos meteorológicos é crucial, para o planejamento costeiro, inclusive de atividades, como navegação, pesca, exploração de petróleo e pesquisa – além de poupar vidas e perdas materiais. Os impactos socioambientais e financeiros podem ser trilhões de dólares em um cenário de aquecimento global, pois eventos extremos podem acontecer com maior frequência, conforme o último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). 

A zona costeira abriga um número grande de pessoas, reflexo do seu desenvolvimento próximo ao oceano por causa de recursos vitais, como alimentos, meio de locomoção e comércio. Durante a passagem de fenômenos meteorológicos, é comum ocorrer erosão de praias, destruição de construções e infraestruturas costeiras, além de perdas de parte de manguezais e marismas, ou até mesmo perdas de vidas. Portanto, o conhecimento sobre o oceano e suas alterações é uma questão de segurança, resiliência, adaptação e soberania nacional.

Monitoramento de contaminantes marinhos

Além de mapear o fundo oceânico e as mudanças causadas pelo clima, para uma melhor previsão quanto ao futuro do ambiente marinho, é necessário mapear também os contaminantes que entram em suas águas todos os dias, principalmente os quase invisíveis, como os microplásticos. 

Um exemplo é o que vem fazendo o Laboratório de Processos Ambientais e Contaminantes Emergentes (LAPACE) do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenado pela professora Andreia Neves Fernandes, o LAPACE está à frente de um estudo que procura identificar os contaminantes emergentes em ambientes aquáticos continentais. Os contaminantes emergentes são aqueles recentemente identificados com o avanço da tecnologia e que causam efeitos em diferentes organismos, inclusive os seres humanos. Como exemplo, pode-se citar os considerados hoje como contaminantes emergentes, os microplásticos, também o hormônio sintético 17α-etinilestradiol, presente em pílulas anticoncepcionais, e o composto bisfenol-A, antes muito utilizado na composição de mamadeiras. 

Com relação ao microplástico, apenas em 2004 ficou definido como uma partícula de plástico menor que 5 mm. Essas partículas menores que um grão de arroz têm sido estudadas no Lago Guaíba, localizado na região metropolitana de Porto Alegre, que recebe cursos de água de vários rios, como o rio Jacuí e o rio Gravataí. A equipe do LAPACE realizou diferentes coletas ao longo do Lago e identificou microplásticos em todas elas – variando o tipo e a quantidade por fatores como, profundidade, proximidade da margem e pluviosidade.

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Microplásticos encontrados no Lago Guaíba em Porto Alegre-RS vistos por microscópio em aumentos de 5x (superior) e 2x (inferior). Fotos cedidas pela autora Profa. Andreia Neves Fernandes.

Embora recentes, as pesquisas sobre os microplásticos já indicam que eles são onipresentes, e trabalhos de sensoriamento remoto e softwares avançados têm buscado identificar seus caminhos. Como o microplástico não é estático – nesse momento os microplásticos do Lago Guaíba podem estar se movendo em direção à Lagoa dos Patos e muitos deles já chegaram ao Oceano Atlântico, o esforço atual do LAPACE é agilizar o processo de coleta, extração e determinação do contaminante por meio da técnica de quimiometria, que identifica a quantidade e os tons das micropartículas por meio dos pixels das imagens capturadas.

O Brasil tem um alto padrão de consumo, gerando uma grande quantidade de lixo plástico e realiza uma irrisória reciclagem. Logo, resolver a questão da quantidade de plástico que os cursos de água do país desaguam no oceano não será uma tarefa fácil.

Alcançar o objetivo de ter um oceano previsível depende de diferentes ações, mas todas elas têm como ponto de partida cada um de nós, seja na forma de ações individuais, de apoio a pesquisas que tenham esse objetivo, ou ainda de apoio a representantes políticos que compreendam a importância dessa pauta. Todas essas iniciativas devem focar tanto na prevenção de eventos adversos futuros, como na remediação daquilo que já aconteceu.

Especial Década do Oceano – Uma parceria entre a Ilha do Conhecimento, a Liga das Mulheres pelo Oceano e a Cátedra UNESCO para Sustentabilidade do Oceano

 

Colaboração:

Andreia Neves Fernandes sobre a autora            

Andreia é professora Associada no Departamento de Química Inorgânica da UFRGS, onde lidera o Laboratório de Processos Ambientais e Contaminantes Emergentes (LAPACE). Dentre suas principais linhas de pesquisa estão o estudo de microplásticos e contaminantes emergentes.

Camila da Silveira sobre a autora            

Camila é oceanógrafa e cientista. Fascinada pela vida marinha, pela conservação e pela influência dos oceanos na sociedade. Trabalha principalmente com recifes de coral, mudanças climáticas e com o mapeamento de áreas costeiras e marinhas.

Mariana Gandra sobre a autora       

Mariana é curiosa por natureza, oceanógrafa por consequência. Fascinada pelas diversas interações transdisciplinares do sistema terrestre e como elas impactam o nosso bem-estar social. Atualmente pesquisa quais são os impactos de ciclones extratropicais formados na Antártica na costa da América do Sul, com foco no Brasil.

Tássia Biazon sobre a autora       

Tássia Biazon é bióloga e jornalista científica. Atualmente é pós-graduanda na Unicamp e no Centro de Pesquisa Boldrini, colaboradora da Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano da USP e professora na rede SESI. Tem experiência e interesse em biologia da conservação, biologia molecular, jornalismo científico e divulgação científica.

Fontes consultadas:

– Artigo científico intitulado “A Review of Remote Sensing for the Assessment and Management of Tropical Coastal Resources”, publicado na revista Coastal Management em 1996, de autoria de Green, E., Mumby, P., Edwards, E., e Clark, C.

– Artigo científico intitulado “Coral Reef Mapping with Remote Sensing and Machine Learning: A Nurture and Nature Analysis in Marine Protected Areas”, publicado na revista Remote Sensing em 2021, de autoria de Da Silveira, C., Marcelo, G., Maida, M., e colaboradores.

– Artigo científico intitulado “Pushing Satellite Imagery to New Depths: Seascape feature mapping in a tropical shelf”, publicado na revista Remote Sensing Applications: Society and Environment em 2020, de autoria de Da Silveira, C., Strenzel, G., Maida, M., e colaboradores.

– Site da Administração Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA) (https://oceanexplorer.noaa.gov/history/quotes/explore/explore.html)

– Matéria no site Descomplica intitulada “Por que a água é tão importante para a vida?”, publicada em 05/04/2015. (https://descomplica.com.br/artigo/quais-as-principais-caracteristicas-da-agua/4n2/).

– Matéria no site Observatório do Clima intitulada “IPCC AR6 WG1: resumo comentado”, publicada em 09/08/2021 (https://www.oc.eco.br/ipcc-ar6-wg1-resumo-comentado/).

– Site A Década da Ciência Oceânica (http://decada.ciencianomar.mctic.gov.br/sobre-a-decada/) .

– Artigo científico intitulado “Relation Between Cyclone Evolution and Fetch Associated With Extreme Wave Events in the South Atlantic Ocean”, publicado na revista Journal of Offshore Mechanics and Arctic Engineeringem 2021, de autoria de Gramcianinov, C., Campos, R., de Camargo, R., e Guedes Soares, C.

– Artigo científico intitulado “Condições Atmosféricas Associadas a Eventos de Ressaca no Litoral Sul e do Sudeste do Brasil durante o El Niño 2015/2016”, publicado na revista Revista Brasileira de Meteorologia em 2019, de autoria de Machado, J., Miranda, G., Gozzo, L., e Custodio, M..

– Matéria no site da WRI Brasil intitulada “Como soluções baseadas na natureza podem preparar as cidades para a mudança do clima” publicada em 22/10/2019. (https://wribrasil.org.br/pt/blog/2019/10/como-solucoes-baseadas-na-natureza-podem-preparar-cidades-para-mudanca-do-clima)

– Site da Administração Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA) (https://oceanservice.noaa.gov/facts/exploration.html)

– Livro “Tempo e Clima no Brasil” de autoria de Cavalcanti, I., Dias, M., Justi, M. e Ferreira, N., publicado pela editora Oficina de Textos em 2009.

– Artigo científico intitulado “Microplastic abundance quantification via a computer-vision-based chemometrics-assisted approach”, publicado na revista Microchemical Journal em 2021, de autoria de Bertoldi, C., Lara, L.Z., Gomes, A. A., e Fernandes, A. N.

– Artigo científico intitulado “First evidence of microplastic contamination in the freshwater of Lake Guaíba, Porto Alegre, Brazil”, publicado na revista Science of the Total Environment em 2020, de autoria de Bertoldi, C., Lara, L.Z., Gomes, A. A., Mizushima, F. A. L., e colaboradores.

(Editoração: Eduardo Borges e Tássia Biazon)

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