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Quando a Terra nos faz lembrar de outros planetas

#Ciência et al. (Conteúdos repletos de informações científicas)

Os ambientes análogos e a astrobiologia

DESTAQUES:
• Ambientes análogos são ambientes terrestres que se assemelham a ambientes extraterrestres. Podem ser estudados em termos geológicos, astrobiológicos ou usados como testes para missões espaciais planejadas ou futuras;
• Em termos astrobiológicos, cientistas estudam a habitabilidade de outros planetas, a formação e preservação de bioassinaturas, a adaptação da vida a ambientes extremos e a capacidade de sobrevivência dos organismos terrestres nestes;
• Estudar a ecologia destes ecossistemas também é fundamental para a astrobiologia;
• Utilizando apenas locais do planeta Terra, conseguimos explorar a possibilidade de vida em Marte, Vênus, Europa (satélite de Júpiter), Encélado e Titã (satélites de Saturno).

A Astrobiologia é a ciência dedicada a estudar as origens, a evolução, a distribuição e o futuro da vida no Universo. Por ser uma ciência bastante abrangente, um astrobiólogo pode ser uma pessoa graduada em Física, Química, Biologia, Geologia, entre outros. 

Isso faz com que as próprias possibilidades de pesquisa dentro da astrobiologia sejam amplas, sendo possível elaborar diversas questões, como por exemplo: Como a vida surgiu na Terra? Quais as evidências de vida em outros planetas? Como podemos testar os limites de sobrevivência dos organismos terrestres? Todas essas questões são amplamente estudadas pelos astrobiólogos, e muitas descobertas incríveis sobre a vida são feitas todos os anos graças ao desenvolvimento dessa ciência. 

Nesse sentido, uma das temáticas de estudo exploradas dentro da Astrobiologia é a dos ambientes análogos. Basicamente, um ambiente análogo é um ambiente terrestre que se assemelha a um ambiente extraterrestre. 

As características que um ambiente análogo deve apresentar podem variar de acordo com o objetivo do pesquisador, dificultando o estabelecimento de “regras” para sua determinação. Assim, podemos dizer que nenhum ambiente análogo é uma representação perfeita de outro planeta, exoplaneta, satélite, ou asteroide, mas por conta de sua composição física, química, geológica e até mesmo biológica, pode servir como um bom modelo de estudo, uma aproximação. 

cratera terra e crateras na lua
Figura 1. CRATERA TERRESTRE E CRATERAS DA LUA. a. Cratera de Barringer, uma cratera terrestre localizada nos Estados Unidos. (Créditos: Daniel Slim/Agence France-Presse – Getty Images). b. Superfície da Lua. Note a quantidade de crateras! (Créditos: Evgeniyqw – Shutterstock). Estudar as crateras terrestres pode ser o passo inicial de entender melhor as crateras lunares, pois ambas foram formadas por processos de impactos.

Antes de entendermos que tipos de pesquisas são conduzidas nesses ambientes, é válido ressaltar que a agência estadunidense de Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (a NASA) estabeleceu três “categorias” de ambientes análogos: 

terra
Obs. Os rovers são veículos de exploração espacial, projetado para andar em superfícies extraterrestres.

 

rover atacama e marte
Figura 2. ROVER NO ATACAMA E EM MARTE. a. Um rover da NASA sendo testado no Deserto do Atacama, no Chile. (Créditos: NASA/CampoAlto/V. Robles). b. O Rover Perseverance, da NASA, realizando seu trabalho no Planeta Marte. (Créditos: NASA/JPL-Caltech/MSSS). Note como os dois cenários são parecidos: o Deserto do Atacama é um análogo para o Planeta Marte!

 

Análogos astrobiológicos são aqueles que possuem relevância para estudos astrobiológicos. Nesses locais, deve ser identificada a vida (atual ou extinta) e a forma como ela interage com o ambiente, que deve ser similar a ambientes extraterrestres. Aqui está uma pequena lista de atividades que os cientistas podem performar em análogos astrobiológicos:

  1. Investigar organismos que já foram extintos, mas estão preservados dentro de rochas antigas, entendendo quais são as bioassinaturas que eles deixam. Esse tipo de pesquisa é importante, pois nos ajuda, por exemplo, a procurar por traços de vida extinta em rochas de Marte! 
    1. Com isso, também é possível entender durante quanto tempo os sinais de vida extinta conseguem se preservar, assim podemos refinar cada vez mais nossos métodos de detecção de bioassinaturas.
  2. Investigar a vida em ambientes diferentes daqueles nos quais estamos acostumados a estar e pensar, para entender quais adaptações os organismos precisam sofrer para sobreviver nesses locais diferentes. A própria evolução da vida e sua capacidade de adaptação tornam-se temáticas dentro desses estudos. 
  3. Expor organismos terrestres de ambientes “amenos” a ambientes análogos (naturais ou simulados) para testar sua capacidade de sobrevivência e entender quais mudanças ocorreriam em seus metabolismos. Assim, é possível também estimar a habitabilidade de outros planetas e satélites.

 

O Contexto Histórico do Estudo de Ambientes Análogos Astrobiológicos:

Os ambientes análogos, em geral, são estudados há mais de cinquenta anos. Entretanto, o enfoque na astrobiologia só começou a ganhar força neste século, com a criação em 2001 do programa da NASA intitulado Astrobiology Science and Technology for Exploring Planets (tradução livre: Ciência e Tecnologia da Astrobiologia para Investigar Planetas), cuja principal perspectiva era realizar investigações biológicas nos ambientes análogos. 

Atualmente, o programa se expandiu e mudou de nome (agora se chama Planetary Science and Technology from Analog Research – PSTAR / tradução livre: Ciência e Tecnologia Planetária da Pesquisa com Análogos), e outros países, por meio de suas instituições científicas, também começaram a pesquisar análogos astrobiológicos. 

Antes desse período, os cientistas já vinham pesquisando ambientes extremos, isto é, habitats em que a vida encontra vários limites (temperatura, pressão, pH, etc) para sua sobrevivência. 

YELLOWSTONE TERRA
Figura 3. FONTE EM YELLOWSTONE. Uma fonte termal no Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos (Créditos: Jim Peaco, National Park Service | Domínio público)

Um exemplo emblemático é o das águas termais, gêiseres e fumarolas do parque de Yellowstone: com águas tão quentes, ninguém esperava que houvesse vida lá. Até que em 1964, o cientista Thomas Brock encontrou microorganismos prosperando em todos esses ambientes inóspitos, o que gerou grande empolgação na comunidade científica internacional e fez com que mais pesquisadores passassem a buscar entender a ecologia desses ecossistemas inusitados. 

Na época, a hipótese da vida ter surgido na água e em altas temperaturas já era bastante conhecida (vale lembrar que estudos sobre a origem da vida também são estudados pela astrobiologia), mas como a astrobiologia estava longe de ser uma ciência conhecida, a associação não era tão clara assim. Entretanto, quando paramos para pensar, é difícil que um ambiente análogo astrobiológico não seja também um ambiente extremo. Afinal, até hoje não conhecemos nenhum planeta ou lua com as condições amenas às quais estamos acostumados aqui na Terra. 

Pesquisar os ambientes extremos é fundamental para entendermos as condições nas quais a vida evoluiu na Terra, e como esse mesmo processo poderia ocorrer em outros locais. A fusão entre o estudo de ambientes astrobiológicos e ambientes extremos resultou em um rápido avanço dessa área de pesquisa. Se antes os principais corpos planetários de interesse eram a Lua e o planeta Marte (em suas diferentes eras geológicas), hoje conseguimos pensar em ambientes análogos para Vênus, Europa (satélite de Júpiter), Encélado e Titã (satélites de Saturno), entre outros. 

 

Um Caso Inesperado: Ambientes Análogos para Vênus

Agora que você já compreendeu o que é a astrobiologia, o que são ambientes análogos e ambientes extremos, e que pesquisas são feitas nestes locais, vamos analisar o caso de Vênus, um conhecido planeta de nosso Sistema Solar. 

Com temperaturas de superfície que atingem os 462ºC e uma pressão atmosférica noventa vezes maior que a nossa, ninguém associaria facilmente Vênus à vida. Entretanto, a suposição de que existe fosfina nas nuvens do planeta virou o jogo. A fosfina é uma molécula tóxica e malcheirosa, mas que é encontrada em microrganismos terrestres e pode ser um indício de vida. A presença de fosfina em Vênus é controversa e ainda estamos longe de uma conclusão, mas já é possível especular como a vida poderia existir lá e quais ambientes terrestres poderiam servir como análogos. 

vênus terra
Figura 4. COMPARAÇÃO VÊNUS E TERRA: Note como o planeta Vênus (esquerda) e o planeta Terra (direita) são diferentes. Mesmo assim, os dois locais são capazes de comportar microrganismos acidófilos – na Terra já temos evidências disso, mas quem sabe um dia encontraremos vida em Vênus também? (Créditos: NASA | Imagem editada pelos autores – sem escala, Vênus é um pouco menor que a Terra).

Se a superfície de Vênus parece tão inóspita, onde a vida poderia existir lá? Bem, não na superfície, mas nas nuvens! Apesar destas nuvens serem ricas em ácido sulfúrico, um ácido extremamente perigoso para os seres humanos devido ao seu alto poder de corrosão de peles e outros tecidos, já foram descobertos microrganismos capazes de neutralizar ambientes superácidos e obter seu alimento a partir dali. 

A partir de suas interações ecológicas, seres vivos de diferentes espécies conseguem conviver em ambientes extremos. Os produtores primários dessas comunidades microbianas acidófilas são os próprios quimioautotróficos, que em vez de realizarem fotossíntese, como as plantas, se utilizam de enxofre para obter energia. Apesar dessa realidade ser bastante diferente da nossa, com plantas verdes autotróficas e animais e fungos que as devoram, essas comunidades quimioautotróficas apresentam interações ecológicas que já são bastante conhecidas na natureza: competição, predação, mutualismo, etc. 

Não é fácil pensar em análogos para Vênus aqui na Terra, mas podemos pensar em dois tipos de ambientes. O primeiro são os de altitudes elevadas, onde a radiação UV é um dos principais desafios para a sobrevivência dos organismos. Na própria atmosfera terrestre, incluindo as nuvens, existem bactérias metabolicamente ativas, possivelmente formando comunidades microbianas aeroplanctônicas. Algumas já foram encontradas até mesmo no início da estratosfera

O segundo são os ambientes extremamente ácidos, onde já foram encontrados microrganismos, como a arquea (um organismo parecido com uma bactéria) Acidianus infernus, que conseguem sobreviver em um pH equivalente ao da bateria de um carro. Níveis altos de acidez são encontrados em locais como as águas termais de Yellowstone, que já foram mencionadas neste texto, e também em lagos vulcânicos. Não é empolgante saber que até nesses lugares a vida pode existir?

 

Tão importante quanto o ambiente, são as interações dos seres vivos que lá vivem! 

Ambientes análogos não são apenas “cenários esquisitos”. Quando falamos em ecossistemas, geralmente nos vem à mente florestas, savanas, recifes de coral e outros locais com uma biodiversidade exuberante. Entretanto, ambientes análogos também são ecossistemas onde a vida prospera, interage e evolui. Estudar o funcionamento desses locais como um todo pode ser um desafio bastante encantador. 

Nesse sentido, é necessário que a ciência siga entendendo quais são as relações estabelecidas entre os organismos extremófilos e destes com os ambientes extremos nos quais vivem. Entender as cadeias alimentares e as interações ecológicas que existem nesses ambientes, como a competição e os mutualismos, pode nos ajudar a compreender quais dinâmicas de ecossistemas poderíamos encontrar em outros lugares do Universo. Olhar para as formas de vida mais inusitadas do nosso planeta e qual sua relação com o espaço onde vivem é um ponto chave para o avanço da astrobiologia!

 

Colaboração:

Juliana Campos Meurer sobre a autora

Juliana é bacharelanda em Ciências Biológicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Realiza iniciação científica no Laboratório de Ecologia de Interações, pesquisando as interfaces entre a ecologia e a astrobiologia. No contexto da astrobiologia, tem interesse principalmente em habitabilidade planetária, ecologia global e ecologia de ecossistemas.

Milton de Souza Mendonça Jr sobre o autor

Milton é professor titular do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenando o Laboratório de Ecologia de Interações. Lá, pesquisamos a diversidade e as interações ecológicas de organismos terrestres como plantas, fungos e artrópodes, além de tentar aprofundar a ligação entre ecologia e astrobiologia.

 

Referências

Artigo científico intitulado “Terrestrial Analogues to Mars and the Moon: Canada’s Role”, publicado na revista Geoscience Canada em 2006, de autoria de Osinski, G. R., Léveillé, R., Berinstain, A.; e colaboradores.

Artigo científico intitulado “Planetary habitability: lessons learned from terrestrial analogues”, publicado na revista International Journal of Astrobiology em 2014, de autoria de Preston, L. J.; e Dartnell, L. R. 

Artigo científico intitulado “Earth as a Tool for Astrobiology—A European Perspective”, publicado na revista Space Science Reviews em 2017, de autoria de Martins, Z.; Cottin, H.; Kotler, J. M.; e colaboradores. 

Artigo científico intitulado “Unearthing terrestrial extreme microbiomes for searching terrestrial-like life in the Solar System”, publicado na revista Trends in Microbiology em 2022, de autoria de Coleine, C; e Delgado-Baquerizo, M. 

Artigo científico intitulado “Biodiversity and ecology of acidophilic microorganisms”, publicado na revista FEMS Microbiology Ecology em 1998, de autoria de Johnson, D. B. 

Artigo científico intitulado “Airborne Bacteria in Earth’s Lower Stratosphere Resemble Taxa Detected in the Troposphere: Results From a New NASA Aircraft Bioaerosol Collector (ABC)”, publicado na revista Frontiers in Microbiology em 2018, de autoria de Smith, D. J.; Ravichandar, J. D.; Jain, S.; e colaboradores.

Matéria no site do NASA Solar System Exploration intitulada “How Scientists Use Earth as a Test Lab for Other Worlds”, atualizada em 03/01/2022. (Website)

Matéria no site do NASA Astrobiology Institute intitulada “About NAI”, publicada em 24/07/2018. (Website)

Texto no site da NASA Astrobiology intitulado “About ASTEP”, publicada em 21/01/2008. (Website)

Texto no site da Astrobiology at NASA intitulado “Planetary Science and Technology from Analog Research (PSTAR)”, sem data de publicação. (Website)

Matéria no site do National Park Service intitulada “Discovering Life in Yellowstone Where Nobody Thought it Could Exist”, atualizada em 08/11/2018. (Website)

(Editoração: Loren Q. Pereira e Nathália A. Khaled)

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