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Infecção pelo novo Coronavírus ativa sequencia de DNA viral ancestral presente no nosso genoma

A ativação do retrovírus K endógeno humano no trato respiratório de pacientes com COVID-19 grave foi associada à mortalidade precoce, segundo estudo preliminar.

 

Um estudo realizado por pesquisadores da Fiocruz, Universidade Federal de Juiz de Fora e Universidade Federal do Rio de Janeiro, e publicado em 11 de maio na versão pré print, ainda não revisada por pares, no site da revista Research Square, associou a mortalidade de pacientes com COVID-19 grave com a ativação de um vírus já presente no DNA humano. O vírus, chamado de retrovírus K ou HERV-K, é um vírus endógeno humano, remanescente de infecções virais que aconteceram há milhares de anos.

 

Como foi conduzido o estudo?

Muitos fatores já foram associados à progressão da COVID-19 para um caso grave, como hipóxia (ausência de oxigênio suficiente nos tecidos para manter as funções corporais), inflamação não controlada e coagulopatia (distúrbios de coagulação e hemorragia), porém, ainda se sabe muito pouco sobre esses mecanismos. Ao tentar elucidar isso, o que os pesquisadores da Fiocruz fizeram foi analisar o viroma (conjunto de todo o material genético viral presente no corpo humano) de amostras de pacientes em tratamento com ventilação mecânica invasiva (VMI), ou seja, intubados. Devido à VMI, a fonte das amostras foram aspirados traqueais de 25 pacientes, com idade média de 57 anos, apresentando os sintomas mais comuns da infecção e comorbidades. Os pacientes exibiam altos níveis de RNA do SARS-CoV-2, e muitos marcadores laboratoriais de inflamação sistêmica e coagulopatia e a taxa de fatalidade entre esses pacientes foi de 58%. 

Com essas amostras, foram feitas a quantificação do RNA do SARS-CoV-2 e a análise do viroma, por sequenciamento das moléculas de RNA presentes, o que também é chamado de transcriptoma. Como esperado, 95% do transcriptoma relacionado a vírus nas amostras era ligado ao SARS-Cov-2. Mas além dele, foram encontradas sequências consistentes relacionadas ao HERV-K, representando cerca de 5% do viroma total. Além disso, o HERV-K estava 5 vezes mais presente no viroma de aspirados traqueais de pacientes COVID-19 sob MVI do que em swabs nasofaríngeos de pacientes com casos leves da doença, acentuando assim a sua associação com os casos severos. Outras análises, como a análise proteômica (do conjunto de proteínas presente) e RT-PCR das amostras, confirmaram a presença de HERV-K nesses pacientes. 

Além disso, também foram realizados testes in vitro, que identificaram que o aumento da expressão de HERV-K foi desencadeado em monócitos primários (células do sistema imune) de doadores saudáveis, ​​após infecção experimental por SARS-CoV-2 in vitro. Assim, em pacientes gravemente enfermos, os níveis mais elevados de HERV-K foram associados com mortalidade precoce (em uma média de 14 dias) na unidade de terapia intensiva. Ainda, o aumento da expressão de HERV-K em pacientes falecidos foi associado à inflamação relacionada ao mediador de resposta inflamatória IL-17, a ativação de monócitos e o maior consumo de fatores de coagulação/fibrinólise, ou seja, à processos inflamatórios e de coagulação exacerbados.

O HERV-K também tem sido associado a outras doenças além da Covid-19, como neoplasias e doenças neurológicas. Inclusive, em indivíduos com HIV-1, o aumento nos níveis de HERV-K precede a ativação imune e reativação do vírus HIV. Esses achados tornam plausível a hipótese de que a expressão deste retrovírus endógeno tenha correlação com alterações na resposta imune. Os resultados do estudo da Fiocruz demonstram uma associação entre os dois vírus e a evolução para casos mais graves, mas mais estudos são necessários para determinar os mecanismos pelos quais isso acontece.

 

O que sabemos sobre os componentes não-humanos do nosso DNA?

Segundo os cientistas, entre todos os HERVs, o HERV-K é o mais contemporâneo dentro do genoma humano, sendo incorporado durante a especiação humano-chimpanzé. Embora surpreendente, a presença de pedaços de vírus no nosso DNA não é novidade para a ciência. 

Estima-se que 8% do nosso DNA consiste em vestígios de vírus antigos e outros 40% são constituídos por sequências repetitivas de pares de bases que também se acredita terem uma origem viral. Sendo assim, praticamente metade do nosso genoma começou com uma infecção. Embora estejam conosco há muito tempo, essas extensas regiões virais são muito mais do que relíquias evolutivas: elas podem estar profundamente envolvidas com várias doenças, incluindo esclerose múltipla, hemofilia e esclerose lateral amiotrófica (ELA), junto com certos tipos de demência e câncer. E como foi visto recentemente pelo estudo da Fiocruz, podem ser fatores de agravamento de outras infecções virais.

Por muitos anos, os biólogos e geneticistas tinham pouca compreensão de como essa conexão funcionava. As primeiras pistas vieram com a descoberta dos transposons, ou “genes saltadores”, descobertos pela pioneira geneticista Barbara McClintock. Nos anos 1940, muito antes da decodificação do genoma humano, ela percebeu que alguns trechos de nosso DNA se comportavam como invasores infecciosos. Esses pedaços de DNA podem se mover pelo genoma, copiando-se e colando-se onde quiserem, por isso o nome de saltadores. Sua ideia foi bastante polêmica na época e por muito tempo sua descoberta também foi chamada de “DNA lixo”, mas finalmente lhe rendeu o Prêmio Nobel em 1983.

 

A imagem mostra três espigas de milho em cima de uma superfície de papelção marrom. As espigas tem milhos de cores diferentes, na primeira predominam as cores amarelo e marrom e na segunda e terceira, as cores amarelo e vermelho escuro, apesar das cores da terceira espiga serem mais opacas, com aspecto mais velho.
Amostras de milho que ajudaram Barbara McClintock a descobirir os transposons e estão mantidas na biblioteca do Cold Spring Harbor Laboratory. Reprodução CSHL.

 

Desde então, os geneticistas determinaram que os genes saltadores se originaram na porção viral do nosso genoma. Muitos desses genes se revelaram benignos ou mesmo úteis. Mas outros atuam como verdadeiros parasitas, como infecções embutidas em nosso próprio DNA. Tudo o que é preciso para libertar esses parasitas é um simples deslize nos mecanismos do corpo que normalmente evitam que os genes pulem e causem danos. Recentemente, muitas das pesquisas sobre a conexão entre genes saltadores e doenças se concentraram então em descobrir as moléculas naturais do corpo que possuem a função de imobilizar os genes, impedindo que suas sequências sejam lidas ou copiadas.

 

News: Jéssica Soares

sobre a autora

Fontes e mais informações sobre o tema:

Artigo científico intitulado “Human endogenous retrovirus K activation in the lower respiratory tract of severe COVID-19 patients associates with early mortality”, publicado na revista Research Square em maio de 2021 de autoria de Temerozo J., Fintelman-Rodrigues, N., Santos, M. e colaboradores.
https://www.researchsquare.com/article/rs-514541/v1

Matéria no site Cold Spring Harbor Laboratory, intitulada “The non-human living inside you”, publicada em 09/01/2020.
https://www.cshl.edu/the-non-human-living-inside-of-you/

Matéria no site Pebmed, intitulada “Retrovírus endógeno humano K (HERV-K) e a Covid-19”, publicada em 26/05/2021.
https://pebmed.com.br/retrovirus-endogeno-humano-k-herv-k-e-a-covid-19/

 

(Editoração: André Pessoni)

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