Image default

O desenho de proteínas artificiais é uma aposta na criação de novas vacinas e medicamentos

Proteínas sintéticas desenhadas em computador já são desenvolvidas e estão em fase de testes para vacina contra COVID-19.

 

Com o avanço de tecnologias para análises bioquímicas e de inteligência artificial, cientistas estão conseguindo desvendar e utilizar biomoléculas, como as proteínas, como ferramentas bioquímicas tão tecnológicas quanto nanorobôs para combater doenças infecciosas, enviar sinais pelo corpo ou desmantelar moléculas tóxicas. Com ferramentas que podem permitir desenhar novas moléculas, já é possível redesenhar a biologia com um propósito.

As proteínas são moléculas complexas, que podem até mesmo serem chamadas de nanomáquinas, que realizam a maioria das tarefas em seres vivos e interagem constantemente entre si. Elas digerem alimentos, lutam contra invasores, reparam danos, sentem o que as rodeiam, carregam sinais, exercem força, ajudam a criar pensamentos e replicam-se. São formadas de longas cadeias de moléculas mais simples chamadas aminoácidos e se retorcem e se dobram em estruturas 3-D extremamente complexas. Suas formas originais são determinadas pela ordem e número dos diferentes aminoácidos usados ​​para construí-las, os quais têm forças de atração e repelência distintas. A complexidade dessas interações é tão grande e a escala tão pequena (uma célula média contém 42 milhões de proteínas) que nunca fomos capazes de descobrir as regras que governam como elas se contorcem de forma espontânea e transformam moléculas e reações. Muitos especialistas presumiram que nunca entenderíamos completamente. No entanto, muito se tem avançado no entendimento da estrutura de proteínas.

Nesse contexto, ganhou destaque a pesquisa de Lexi Walls e colegas da Universidade de Washington que estão desenvolvendo um novo tipo de vacina, baseada em proteínas microscópicas artificiais elaboradas em um computador. Essa iniciativa marca o início de um salto extraordinário em nossa capacidade de redesenhar a biologia. Com essa tecnologia, eles esperam poder não apenas combater o COVID, mas também revolucionar o campo da vacinologia, colocando-nos no caminho para derrotar outras doenças infecciosas, desde a gripe ao HIV.

Walls é uma jovem bióloga estrutural e desenvolveu seu doutorado estudando a estrutura de coronavírus. Em sua defesa de doutorado em dezembro de 2019 ela previa que essa família de vírus tinha potencial para causar uma pandemia e que, infelizmente, não estávamos preparados para isso, como tristemente chegamos a comprovar. Apesar da situação premonitória, seus conhecimentos a colocaram na vanguarda das pesquisas para o desenvolvimento de uma vacina contra o novo vírus. 

Na estrutura do SARS-CoV-2 existe uma proteína chave que interage com os receptores das células humanas. É a proteína chamada spike, ou espícula. Uma parte desta proteína, conhecida como domínio de ligação ao receptor, ou RBD, é a parte responsável por fixar o vírus no receptor, e o vírus usa essa conexão para deslizar para dentro da célula e se replicar. Por causa do seu papel, o domínio RBD é o principal alvo dos anticorpos do sistema imunológico. Esse domínio também é o principal alvo das vacinas desenvolvidas para prevenir a infecção pelo novo coronavírus.

 

Duas cientistas em pé dentro de um laboratório.
As desenvolvedoras de vacinas Lexi Walls (à esquerda) e Brooke Fiala (à direita) usaram proteínas personalizadas para criar uma nova inoculação COVID promissora. Reprodução Scientific American.

 

As vacinas COVID de primeira geração, incluindo as vacinas de mRNA que foram muito inovadoras e já ajudaram a salvar muitas vidas, funcionam introduzindo a proteína spike do vírus no corpo, sem um coronavírus funcional anexado, para que o sistema imunológico possa aprender a reconhecer o RBD e produzir sua defesa. Mas o RBD é periodicamente escondido por outras partes da proteína spike, protegendo o domínio dos anticorpos que procuram se ligar a ele. Isso atrapalha a resposta imunológica. Além disso, uma proteína spike flutuante não se parece com um vírus natural e nem sempre desencadeia uma forte reação imunológica, a menos que uma grande dose de vacina seja usada. Essa grande dose aumenta os custos e pode desencadear fortes efeitos colaterais.

 

Esquema representando a estrutura do vírus SARS-CoV-2.
Estrutura do vírus SARS-CoV-2. Em destaque a proteína da superfície Spike, que pode ser dividida entre as regiões S1, S2 e RBD. Reprodução Biometrix Diagnóstica.

 

Por mais bem-sucedidas que as vacinas contra COVID tenham sido, muitos especialistas vêem as inoculações baseadas em proteínas naturais como uma tecnologia provisória. “Está ficando claro que apenas fornecer proteínas naturais ou estabilizadas não é suficiente”, diz Rino Rappuoli, cientista-chefe e chefe de desenvolvimento de vacinas da gigante farmacêutica GlaxoSmithKline, com sede no Reino Unido. A maioria das vacinas atuais, desde inoculações na infância até vacinas contra a gripe em adultos, envolvem proteínas naturais, que os vacinologistas chamam de imunógenos ou antígenos. “Precisamos projetar antígenos que sejam melhores do que as moléculas naturais”, diz Rappuoli.

Assim, Walls e colegas tiveram a ideia de, em vez da proteína inteira, apresentar ao sistema imunológico o domínio RBD, que não teria nenhum escudo para se esconder atrás. “Queríamos mostrar o componente-chave”, diz Walls, “para dizer:‘ Ei, sistema imunológico, é a isso aqui que você quer reagir!”. O problema é que o domínio RBD por si só seria muito pequeno e desconhecido para chamar a atenção do sistema imunológico. Então, Walls buscou ajuda da equipe do Institute for Protein Design (IPD), que já tinha conhecimento suficiente sobre o enovelamento de proteínas para projetar e construir proteínas muito simples e pequenas – diferentes de todas as que já foram encontradas em um organismo vivo – que se dobrariam em formas consistentes com funções previsíveis.

Em 2019, um grupo do IPD liderado pelo bioquímico Neil King havia projetado duas proteínas minúsculas com interfaces complementares que, quando misturadas em solução, se encaixariam e se automontariam em nanopartículas. Essas partículas tinham o tamanho de um vírus e eram totalmente personalizáveis ​​por meio de uma simples mudança em seu código genético. Quando os cientistas enfeitaram as partículas com a proteína do vírus sincicial respiratório, a segunda maior causa de mortalidade infantil em todo o mundo, eles desencadearam uma resposta imune impressionante nos primeiros testes. 

Assim, surgiu a ideia de utilizar esse núcleo de nanopartículas para uma vacina contra o SARS-CoV-2, usando como molécula de reconhecimento, o domínio RBD. Como vantagens, a nanopartícula à base de proteína seria barata e rápida de produzir em comparação com vacinas que usam vírus mortos ou enfraquecidos. Também seria estável em temperatura ambiente e fácil de administrar às pessoas, ao contrário das vacinas de mRNA que devem ser mantidas congeladas a -80ºC. 

Walls e cientistas do IPD desenvolveram um protótipo: uma esfera de nanopartículas exibindo 60 cópias do RBD. Os cientistas também tentaram algo radical. Em vez de fundir os RBDs diretamente na superfície da nanopartícula, eles os amarraram com fios curtos de aminoácidos, como pipas. Dar aos RBDs um pouco de ação poderia permitir que o sistema imunológico visse melhor todos os ângulos e produzisse anticorpos que atacariam muitos pontos diferentes. Quando esses protótipos foram inoculados em ratos e comparados com a inoculação da proteína spike inteira, foi visto que os ratos que receberam esses protótipos conseguiram neutralizar de forma muito mais eficiente os pseudo vírus do SARS-CoV-2 (uma versão artificial do vírus que não se replica e é mais segura para uso em laboratórios). Ratos que receberam uma dose baixa da spike pura, demonstraram efeito zero sobre os pseudo vírus. Os que receberam uma dose alta de spike mostraram anticorpos com um efeito neutralizante moderado, semelhante ao que algumas outras vacinas haviam produzido. Mas em ratos que receberam a vacina de nanopartículas, o pseudo vírus foi completamente neutralizado, tendo um efeito 10 vezes maior que as doses mais altas de spike testadas. A  partir daí a vacina de Walls já passou por todas as fases de testes pré-clínicos (em animais) e entrou na última fase de testes clínicos (em humanos), no início de 2021 e a essa altura já era um sucesso, como um emblema do poder do design de proteínas. 

Biólogos estruturais como David Baker, que fundou o IPD – onde Walls e Veesler foram buscar suas nanopartículas – foram capazes de deduzir algumas das regras básicas e as relações entre o que dita o código genético e como as proteínas são formadas e como elas agem. O grupo de Baker incorporou essas rubricas em um programa de computador que prevê estruturas, chamado Rosetta (como Pedra de Roseta da estrutura das proteínas para traduzir entre o ponto inicial dos genes e o ponto final das funções corporais). E usou essas informações para fazer várias proteínas pequenas, normalmente com algumas dezenas de aminoácidos. Alguns de seus sucessos mostraram o grande potencial da área: nanopartículas microscópicas que poderiam ser usadas ​​para embalar medicamentos e transportá-los para o corpo e detectores moleculares que disparam quando encontram células com combinações específicas de aminoácidos em sua superfície, indicando que tais células são cancerosas. 

Mas as proteínas mais importantes nos seres vivos são muito maiores do que esses exemplos e contêm milhares de aminoácidos, cada um dos quais interage com até uma dúzia de vizinhos, alguns formando ligações tão fortes quanto as de um diamante, alguns afastando outros. Todas essas relações se transformam dependendo da proximidade. Assim, as possibilidades tornam-se rapidamente astronômicas e as fórmulas para descobrir as estruturas finais há muito tempo iludem nossas melhores mentes e supercomputadores. Por isso, o ramo da biologia estrutural ainda é um vasto universo a ser explorado. As proteínas artificiais que já foram projetadas, por mais excitantes que sejam, são apenas os primórdios. As possibilidades de um cenário futuro repleto de moléculas personalizadas ainda estão além da nossa concepção. Mas, assim como as próprias novas proteínas, essas possibilidades irão, com o tempo e com elegância, tomar forma.

 

News: Jéssica Soares

sobre a autora

Fontes e mais informações sobre o tema:

Matéria no site Scientific American, intitulada “Artificial Proteins Never Seen in the Natural World Are Becoming New COVID Vaccines and Medicines”, publicada em junho de 2021.
https://www.scientificamerican.com/article/artificial-proteins-never-seen-in-the-natural-world-are-becoming-new-covid-vaccines-and-medicines/

 

(Editoração: André Pessoni)

Postagens populares

Nova organela descoberta em algas permite a fixação de nitrogênio

IDC

Como o cérebro regula as emoções?

IDC

As galinhas também têm sentimentos!

IDC

Cientistas descobrem a origem do medo no cérebro

IDC

Vaca modificada geneticamente produz insulina no leite

IDC

Cientistas conseguem formar óvulo a partir de célula da pele

IDC