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O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista

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A revolução feminista em quarenta anos de estudo

Sobre
Categoria: Livro
Título: O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista
Autor/criador: Silvia Federici
Ano de publicação: 2018
Editora: Elefante
Páginas: 388

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Capa do livro “O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista”, de Silvia Federici. Imagem: Editora Elefante.

As revoluções não resultam simplesmente de mudanças na alta hierarquia de um regime, da substituição de um líder por outro. As transformações reais ocorrem quando as relações sociais que compõem a vida cotidiana mudam, quando há uma revolução dentro da sociedade e através das estratificações do corpo social.

No livro O Ponto Zero da Revolução, a estudiosa e ativista feminista Silvia Federici oferece o tipo de perspectiva revolucionária capaz de revelar os obstáculos presentes no caminho de tal mudança. Seu trabalho se concentra nas hierarquias e divisões que nos colocam uns contra os outros em um sistema que se baseia na desvalorização da atividade humana para impor seu domínio e poder se perpetuar. 

Além disso, para a autora do livro, nosso presente é caracterizado por uma revolução feminista inacabada, na qual uma perspectiva transformadora põe em chequea subjugação dos corpos e do trabalho das mulheres de forma separada das demais transformações sociais; na verdade, tal subjugação deveria ser contestada como parte de uma transformação coletiva das relações sociais; só assimuma mudança real de fato ocorreria.

Nesse livro, escrito entre os anos 1972 e 2010, foram coletadas pesquisas e estudos dessas quase quatro décadas de envolvimento das lutas feministas em movimentos sociais, reunindo o pensamento político de Federici sobre a imensidade de experiências cotidianas que informaram as questões que ela buscou em sua escrita. 

O fio condutor do livro é o tema da reprodução social, em suas palavras “compreendida como o complexo de atividades e relações por meio das quais nossa vida e nosso trabalho são reconstituídos diariamente”, seguindo a linha de raciocínio de seu livro Calibã e a bruxa, já discutido aqui no site anteriormente. 

É importante ressaltar que isso diz respeito às formas como os corpos, o trabalho e as capacidades emocionais das mulheres foram explorados nas buscas implacáveis ​​e destrutivas da acumulação capitalista. 

O Ponto Zero da Revolução é dividido em três partes: 

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Fotografia da autora Silvia Federici

A primeira parte do livro consiste nos escritos de Federici sobre a teoria e a política do trabalho doméstico, conforme se desenvolveu por meio de seu envolvimento ativo na Campanha Internacional de Salários para o Trabalho Doméstico, de 1972 em diante. O argumento central de Federici em relação à exploração do trabalho doméstico e das mulheres, é o pressuposto de que o trabalho doméstico é intrínseco à natureza da mulher, permitindo a acumulação de capital pelo Estado, por meio da associação dessa atividade à natureza feminina. Assim, a lógica capitalista a coloca como uma base na organização do trabalho dentro da instituição familiar.

Nesse sentido, Federici defende a remuneração como uma medida essencial para que seja possível negar a naturalização do trabalho doméstico como feminino, mas esta luta pelo salário pago pelo Estado, no entanto, se voltou para o direito de trabalhar fora, afastando assim as donas de casa de movimentos feministas. Mas a luta deveria ser pela independência econômica, não pelo trabalho em si. Poucas mulheres conseguiram realmente dividir as tarefas domésticas com maridos, passando a exercer jornada dupla e ficando ainda mais cansadas.

A segunda parte abrange o período da década de 1990 e início dos anos 2000, quando Federici passou alguns anos lecionando na Nigéria e experimentando, em primeira mão, os efeitos do ajuste estrutural neoliberal nos países em desenvolvimento e de um programa de austeridade alimentado pela dívida ao FMI (Fundo Monetário Internacional), levando a diminuição dos investimentos públicos em  serviços essenciais de saúde, educação e previdência, acarretando em uma escalada da sobrecarga de serviços já atreladas às mulheres.

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Participantes da instalação MFA ’14 de Megan Young, ‘Longest Walk’. Fonte: Evan Prunty.

Nesse sentido, o tipo de perspectiva feminista em que autora desempenha um papel ativo em sua promoção é aquele que olha para as lutas anticoloniais, tornando visíveis as dimensões de gênero e de raça nessa divisão global do trabalho. Essa perspectiva feminista pode explicar como as transformações características da era neoliberal explicam não apenas uma mercantilização do trabalho doméstico em resposta às lutas feministas, mas também explicam como a reorganização do trabalho, alimentada por essa mercantilização, busca explorar o trabalho em suas dimensões mal remuneradas, mas também não remuneradas. 

A terceira parte do livro tem como foco os bens comuns e a reprodução social, composta por ensaios escritos no início dos anos 2000 até 2010 e o surgimento da mais recente onda de lutas antiausteridade em todo o mundo, incluindo o movimento OWS (Occupy Wall Street).

A autora analisa historicamente as investidas capitalistas que retiraram da população, especialmente feminina, o acesso à terra e, assim, à sua subsistência. Com isso, as comunidades locais empobreceram e tornaram-se dependentes de recursos pertencentes ao grande capital, levando à uma sociedade mais desigual. Nesse sentido, historicamente as mulheres são as agentes de vanguarda na luta pela manutenção das terras e contra o capital. Federici infere que uma das mais eficazes formas de construção de uma sociedade mais justa e solidária, e menos competitiva, é a luta por essas terras e a subsistência.

E aqui está o essencial da ideia do livro, e dos demais livro sobre revolução feminista da autora, do que essa perspectiva pode significar: a necessidade de encontrar modos de vida não confinados aos valores da sociedade capitalista. 

Para a autora, não se trata apenas da satisfação das necessidades materiais básicas, mas também das dimensões emocionais e psicológicas da vida social. A confiança nos próprios valores e a necessidade de comunidades reais de cuidados mútuos são cruciais para uma política atual e, principalmente, para dar uma perspectiva positiva para o futuro.

Já a perspectiva da reprodução social dá sentido à crise contemporânea que vivemos, demonstrando como o regime de austeridade aumenta o trabalho reprodutivo não remunerado à medida que a crise financeira do Estado atinge os indivíduos e famílias, especialmente as mulheres. Justamente nesse contexto, é preciso construir práticas coletivas de cuidado para desfazer e transformar a individualização e o isolamento.

Por fim, pode-se dizer que O Ponto Zero da Revolução é uma obra extremamente relevante, especialmente no Brasil, em que é visto um movimento amplo de desmonte das políticas públicas edos direitos trabalhistas, e pelo implemento do neoliberalismo radical. Dessa forma, o livro traz importantes discussões e exemplos concretos de populações que, enfrentando questões desse tipo, buscaram lutar por um futuro menos desigual e pela construção de uma sociedade menos violenta e com alternativas à busca do lucro. 

Nesse sentido, as análises históricas feitas por Federici permitem que as sociedades que partilham das heranças coloniais, patriarcais e racistas, ampliem suas ações feministas a fim de lutar contra a austeridade capitalista. As emancipações efetivas de grupos historicamente subjugados como as mulheres são instigadas pela autora, a fim de se buscar cada vez mais fortalecer as resistências feministas latino-americanas anticapitalistas, que, no passado e ainda hoje, são voltadas à conquista de direitos reprodutivos, à redução da violência de gênero e à retomada de poderes políticos e direitos por grupos de fato populares.

 

Colaboradora:

Nathália Amato Khaled sobre a autora

Nathália é perita criminal, professora, doutora em genômica e bioinformática, mestre em imunologia e graduada em Biomedicina. Fascinada pela área forense desde os 11 anos de idade, atua na mesma e vê na educação, aliada à ciência, as possibilidades de mudanças significativas para a sociedade. Nathália também é responsável pelo desenvolvimento do website e gestão de conteúdo no Ilha do Conhecimento.

 

(Editoração: Fernando F. Mecca)

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