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A busca pelo fim do uso de animais em testes de cosméticos: A Epiderme Humana Reconstituída

Uma nova Epiderme Humana Reconstituída para testes
de irritação cutânea in vitro

Destaques:
– Métodos alternativos in vitro podem reduzir o uso de animais em testes de irritação cutânea;
– Desenvolver nacionalmente tais métodos é necessário para enfrentar barreiras de custo e de importação de kits para pesquisa;
– A Epiderme Humana Reconstituída (RHE) desenvolvida no Brasil apresenta-se como alternativa para testes em animais.


Resumo

Atualmente, diferentes métodos alternativos in vitro já validados reduzem o uso de animais em pesquisas, a exemplo da Epiderme Humana Reconstituída (RHE), que substitui o Teste de Draize. O desenvolvimento desses novos métodos é de suma importância, pois consegue vencer barreiras de custo e de importação. Contudo, é um desafio muito grande. O presente estudo teve como objetivo desenvolver um modelo de RHE para avaliação de irritação dérmica, seguindo o guia 439 da OCDE. Os resultados demostraram que a RHE é similar à pele humana nativa e aos modelos já validados, cumprindo os parâmetros de qualidade exigidos pelo guia, conseguindo diferenciar as substâncias irritantes das não irritantes. Com isso, o modelo atende as exigências da OCDE e pode ser validado para o uso em laboratórios e indústrias cosméticas.

 

Introdução

A ciência está em busca de novas técnicas para a redução (do inglês, reduction), substituição (replacement) ou aperfeiçoamento (refinement) do uso de animais para fins de pesquisa, conforme o princípio dos 3R’s de Russel e Burch (1959). Assim surgiu a ciência dos métodos alternativos, uma área que está em plena ascensão e a cada dia ganha mais força. Desde 2013, é proibido o uso de animais para avaliação de cosméticos na União Europeia. Por essa razão, testes em animais, como o Teste de Draize, foram substituídos pelo modelo da Epiderme Humana Reconstituída (RHE).  Este modelo utiliza queratinócitos, que são células da camada superficial da pele (epiderme) e estão em contato com o meio externo. Os kits comerciais de RHE têm alto custo e, nos países em desenvolvimento, como o Brasil, as indústrias cosméticas se deparam com grande dificuldade de importação, devido a problemas alfandegários. Nesse cenário, a OCDE disponibilizou guias que incentivam a produção de modelos de RHE para testes de irritação da pele, orientando de forma detalhada sobre as avaliações que devem ser realizadas para manter um controle de qualidade, reprodutibilidade e, futuramente, validação dos modelos. Porém, é necessário o desenvolvimento de protocolos mais acessíveis para a realização de estudos toxicológicos, possibilitando assim uma maior autonomia e maior avanço no desenvolvimento de metodologias alternativas.

Com o objetivo de facilitar o acesso à essas metodologias alternativas, um grupo de estudo da UFG  desenvolveu um modelo de Epiderme Humana Reconstituída similar à epiderme humana nativa, cumprindo com os parâmetros de qualidade preconizados pelo guia 439 da OCDE, que pode ser usado para ensaios de irritação da pele in vitro.

 

Metodologia

Para a construção da RHE foram utilizadas células da pele (queratinócitos) provenientes de amostras de prepúcios doadas pelo Hospital Universitário/USP. As células foram separadas do resto do tecido por uma técnica que envolve enzimas específicas. Posteriormente, os queratinócitos foram cultivados em placas especiais (insertos) que foram previamente revestidas com Colágeno Tipo IV (proteína da matriz extracelular dos animais). As células foram depositadas em cima da camada de colágeno, formando uma cultura 3D, que mimetiza o tecido natural. A cultura foi submersa em meio líquido nutritivo e com a parte superior das células expostas ao meio externo, formando a interface ar-líquido (Figura 1).

células in vitro, cultura 3D desenho
Figura 1: Esquema de cultura 3D (células + colágeno) e interface ar-líquido. Imagem: Jordana Andrade Santos.

Com o modelo pronto, foram realizadas as análises de qualidade descrita no guia 439 da OCDE. Os modelos de epiderme foram levados ao microscópio óptico para avaliação da estrutura e da função do tecido. Foi analisada também a integridade e a função de barreira (principais funções da pele), pois o modelo foi exposto à substâncias (Triton X-100 e sódio lauril sulfato [SDS]) que possuíam a capacidade de serem tóxicas para as células

Avaliou-se também a viabilidade celular, isto é, a triagem de substâncias que possam ter ação na proliferação das células ou serem tóxicas de acordo com a quantidade de células vivas, analisadas pelo Método de MTT. Foram testadas 13 substâncias já conhecidas como irritantes ou não à pele como parâmetro de qualidade. Os resultados obtidos foram comparados com modelos de referência in vitro já aprovados pela OCDE e com valores obtidos em estudos com animais. Os testes foram realizados em três experimentos independentes para a avaliação da reprodutibilidade dentro do laboratório.

 

Resultados e Discussão

O grupo desenvolveu um modelo de epiderme humana reconstituída similar à epiderme humana nativa, que cumpre os parâmetros de qualidade preconizados pelo guia 439 da OCDE e pode ser usado para ensaios de irritação dérmica in vitro. 

A similaridade da RHE com o tecido natural da pele foi visualizada no microscópio, observando-se que os queratinócitos se organizaram na epiderme em camadas, assim como na pele humana natural (camada basal, camada espinhosa, camada granulosa e camada córnea) (Figura 2).

células da epiderme humana e tecido imagem de microscopia
Figura 2: Imagens de microscópio: (A) epiderme humana nativa, (B) modelo de epiderme humana reconstituída (RHE). Coloração Hematoxilina e Eosina. Imagem: adaptada de Pedrosa et al., 2017.

No teste de avaliação da função de barreira, o modelo se mostrou resistente às substâncias tóxicas na qual foi exposto (Triton X-100 e SDS), indicando que essa barreira estava intacta e que as camadas estavam fortes o suficiente para suportar determinadas substâncias. Com isso, a RHE apresentou todos os parâmetros de qualidade exigidos pelo guia 439 da OCDE para seguir com os testes de irritação da pele. A capacidade de distinguir substâncias irritantes das não irritantes também reflete que a função de barreira está de acordo com o desejado. O teste de classificação das 13 substâncias apresentou especificidade (porcentagem de substâncias identificadas como não irritantes), sensibilidade (porcentagem de substâncias irritantes identificadas) e precisão (porcentagem de acerto na identificação) adequadas. Assim, a RHE do grupo conseguiu classificar substâncias de forma satisfatória e semelhantes aos modelos in vivo e in vitro já produzidos. O sucesso em três experimentos independentes indica que este modelo é reprodutível e, assim, está pronta para ser validado. Os modelos alternativos in vitro, como a RHE, são altamente reprodutíveis, apresentam baixa variabilidade, são mais objetivos e ainda contribuem para a redução do uso de animais para avaliações toxicológicas de irritação da pele, como no caso do Teste de Draize. 

Além disso, esse tipo de ferramenta pode ser utilizado não só para avaliações de irritação cutânea, mas tem o potencial de substituir o uso de animais em outras áreas de pesquisa. O Brasil pretende seguir a tendência mundial de proibir o uso de animais em pesquisas no futuro, e começou a reconhecer algumas metodologias alternativas, começando com o uso de métodos validados pela OCDE, como os de modelos com RHE. Contudo, os modelos validados são produzidos no exterior e são inacessíveis por importações por questões logísticas e aduaneiras. Com isso, o desenvolvimento de novos modelos de epiderme propicia uma independência às pequenas empresas e laboratórios e ainda proporciona uma maior variabilidade de modelos de epidermes de diferentes fontes, que podem fomentar as indústrias de forma geral. Para esse protocolo, o grupo preconizou o uso de substâncias que fossem de fácil acesso para a comunidade científica para que, assim, a reprodução fosse de forma mais viável. 

Produzir modelos de epiderme reconstituída no Brasil irá impactar positivamente na implementação de novos métodos in vitro, principalmente em relação à redução de custos, além de ser considerada uma grande inovação para a indústria e para a pesquisa.

 

Conclusão

Através deste estudo, o grupo de pesquisa mostrou que o modelo de RHE por células primárias corrobora com os dados in vivo e in vitro já validados para irritação dérmica e atende a todos os requisitos dispostos no guia da OCDE. Além disso, o desenvolvimento deste método contribui para o reconhecimento dos métodos alternativos nacional e internacionalmente. 

Colaboração: Jordana Andrade Santos

sobre a autora

Artigo original

O texto apresentado é uma adaptação do artigo “A new reconstructed human epidermis for in vitro skin irritation testing”, publicado pela revista  Toxicology in Vitro em agosto de 2017, de autoria de Pedrosa, T. N. e colaboradores. O artigo original pode ser acessado aqui.

(Editoração: Beatriz Spinelli, Fernando Mecca e Caio Oliveira)

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