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Como a modelagem computacional ajuda entender a distribuição geográfica dos seres vivos?

Modelando a ecologia e a evolução da biodiversidade

 

Resumo

A biodiversidade não está igualmente distribuída no espaço geográfico. Um dos principais desafios de estudos ecológicos e evolutivos é compreender como diferentes processos interagem ao longo do tempo e do espaço para gerar e manter os padrões espaciais de biodiversidade. Neste trabalho os pesquisadores simularam a vida na América do Sul durante os últimos 800 mil anos com base em uma série de processos amplamente reconhecidos por influenciarem a biodiversidade. Essa abordagem permitiu aos pesquisadores simularem diferentes cenários em busca daqueles que mais se aproximam dos padrões reais. As simulações biogeográficas recuperaram o padrão espacial de aves, mamíferos e plantas sul americanas, e demonstraram a importância da cordilheira dos Andes e das mudanças climáticas para a diversificação de linhagens, que resultaram na biodiversidade que conhecemos atualmente.

 

Introdução 

A diversidade biológica não está distribuída da mesma forma ao redor do globo. Algumas regiões concentram uma biodiversidade muito maior que outras, como é o caso da América do Sul, que possui a maior floresta tropical do mundo: a Amazônia. Apesar de décadas de estudos, desvendar quais os processos que geram e mantém os padrões geográficos de biodiversidade ainda é um dos maiores desafios em ecologia e evolução.

Uma série de diferentes fatores e processos tem sido investigada como determinante da biodiversidade. Sabe-se que a sobrevivência dos organismos é limitada por condições climáticas específicas, portanto, o clima é um fator importante para determinar a distribuição das espécies. Porém, o clima não foi estável ao longo do tempo e os múltiplos ciclos climáticos que ocorreram no passado potencialmente influenciaram a diversidade biológica. Mudanças climáticas podem desencadear uma série de mudanças na biodiversidade, como a expansão, contração, fragmentação ou mudança na área de distribuição das espécies (range), que por sua vez influenciam as taxas de extinção, persistência e especiação, e a intensidade de competição com outras espécies. Por exemplo, mudanças no clima podem causar eventos de extinção caso as espécies não consigam dispersar para locais com climas adequados, ou especiação caso a mudança no clima separe populações por tanto tempo que elas acabam por se diferenciar, originando novas espécies.  

Variações topográficas são capazes de amenizar o efeito das mudanças climáticas por possibilitar que as espécies escapem de climas extremos e mudem sua distribuição para locais de maior ou menor altitude. Regiões montanhosas são também importantes barreiras que isolam populações e influenciam a diversificação biológica. Na América do Sul, a cordilheira dos Andes tem sido considerada central para manutenção da biodiversidade durante os ciclos climáticos. Além desses processos, a diversidade biológica também é influenciada pela competição entre espécies que habitam um mesmo local. Em casos de competição extrema é possível que uma espécie elimine outra, um processo conhecido como exclusão competitiva.

Apesar do amplo conhecimento sobre esses processos, desvendar as causas dos padrões espaciais de biodiversidade ainda é um desafio por causa da impossibilidade de realizar experimentos em grandes escalas espaciais e temporais. Estudos como esse são dificultados pelo fato de múltiplos processos serem capazes de gerar padrões similares, além dos incontáveis resultados que podem ser gerados a partir da interação de múltiplos processos atuando ao longo do tempo e do espaço geográfico. Visando resolver essas questões, cientistas criaram um mundo virtual onde simularam a vida na América do Sul com base nos possíveis processos que podem ter atuado gerando a biodiversidade que conhecemos atualmente.

 

Material & Métodos 

Para estudar a biodiversidade na América do Sul ao longo do tempo, os cientistas que desenvolveram este trabalho construíram um mundo virtual espacialmente explícito e simularam o que acontece com a biodiversidade quando variavam a distância de dispersão, a taxa evolutiva, o tempo para especiação e a intensidade de competição dos organismos. Este modelo utilizou dados de reconstrução climática dos últimos 800 mil anos e um mapa real da América do Sul, cuja complexidade topográfica inclui os Andes, a mais longa cadeia de montanhas e a única que atravessa os trópicos. O período estudado é importante porque ele abrange uma série de ciclos climáticos.

Os pesquisadores geraram uma série de possíveis cenários a partir da variação na intensidade dos diferentes processos ecológicos e evolutivos que podem estar gerando e mantendo a biodiversidade (Figura 1). Após conduzirem múltiplas simulações para cada possível cenário, os pesquisadores compararam os padrões de biodiversidade simulados com os padrões reais de mamíferos, aves e plantas para identificar quais das simulações mais se aproximavam com a realidade.

Figura 1: Estrutura do modelo computacional utilizado para simular a vida na América do Sul, destacando as relações dos processos ecológicos e biogeográficos com a biodiversidade. Botões de controle indicam os parâmetros que variaram entre os diferentes cenários. Imagem: modificada de Rangel et al. (2018)

 

Resultados & Discussão

As simulações foram capazes de gerar padrões de biodiversidade muito similares aos padrões reais de mamíferos, plantas e aves na América do Sul (ver exemplo em Figura 2). As mudanças climáticas se mostraram centrais para explicar estes padrões, evidenciando o papel dos ciclos climáticos na promoção de eventos de especiação e extinção de espécies. As simulações demostraram que de tempos em tempos existem conexões climáticas entre a floresta Amazônica e a Mata Atlântica, possibilitando a movimentação de espécies entre essas duas importantes florestas. Isso explica porque a biodiversidade da Amazônia e da Mata Atlântica compartilham tanta similaridade. Porém, quando essa conexão climática se fecha, as populações ficam isoladas, se diferenciam e acabam por originar novas espécies.

Figura 2: Mapa de biodiversidade simulada e de riqueza de espécies real de aves na América do Sul. Cores quentes indicam maior número de espécies. Imagem: modificada de Rangel et al. (2018)

Os Andes foram identificados como sendo de central importância para a acumulação de espécies ao longo do tempo por possibilitar a sobrevivência de espécies frente às mudanças climáticas. O aquecimento no clima faz com que as espécies dispersem para regiões de maior altitude, enquanto que o resfriamento faz com que elas desçam para áreas de menor altitude. Além de possibilitar a sobrevivência das espécies, essa movimentação causa o isolamento de populações, gerando especiação e aumentando o número de espécies. Porém, nem todas as espécies são capazes de dispersar para acompanhar a mudança do clima e acabam sendo extintas. Portanto, os Andes atuam como berçários e cemitérios de biodiversidade, concentrando eventos de surgimento e extinção de espécies.

Esses resultados levaram os cientistas a questionarem como seria a biodiversidade da América do Sul na ausência dos Andes. Por se tratar de um mundo virtual, os pesquisadores realizaram as mesmas simulações, mas agora achatando o mapa para remover o efeito topográfico dos Andes. Os resultados mostraram que sem essa extensa cordilheira de montanhas, não seria possível ter uma região tão biologicamente diversa quanto temos atualmente na América do Sul.

 

Conclusão

Simulações de computador baseadas em processos ecológicos e evolutivos, utilizando reconstruções climáticas dos últimos 800 mil anos e um mapa real da América do Sul foram capazes de recuperar padrões espaciais reais de biodiversidade. As simulações demonstraram a importância das mudanças climáticas e dos Andes para a biodiversidade sul americana.

 

Pesquisa ao seu alcance: Elisa Barreto Pereira

sobre a autora

Artigo original

O texto apresentado é uma adaptação do artigo “Modeling the ecology and evolution of biodiversity: Biogeographical cradles, museums, and graves”, publicado pela revista Science, em 2018, de autoria de Thiago F. Rangel, Neil R. Edwards, Philip B. Holden, José Alexandre F. Diniz-Filho, William D. Gosling, Marco Túlio P. Coelho, Fernanda A. S. Cassemiro, Carsten Rahbek, Robert K. Colwell. O artigo original pode ser acessado em http://science.sciencemag.org/content/361/6399/eaar5452/tab-pdf.

(Editoração: Priscila Rothier, Fernando Mecca e Caio Oliveira) 

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